quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A modernidade dos extremos




Robson dos Santos

O século XX experimenta a modernidade em suas múltiplas configurações e potencialidades, sobretudo as destrutivas. Neste curto, porém extremo período, os indivíduos, as classes e as sociedades são lançadas em uma experiência social, política e cultural que aprofunda as reconfigurações e referências que já emergiam em períodos anteriores. Ciência, produção em massa, consumismo, revoluções, movimentos sociais, burocratização, guerras e a destruição definem a identidade do século XX. Daí a morte e a sua parada definitiva, o cemitério, representarem o fio condutor da montagem visual de Nós que aqui estamos por vós esperamos, documentário brasileiro de Marcelo Marsagão construido sobre imagens, cenas e personagens, reais e fictícios, do século passado.
O filme possui como inspiração “teórica” as obras do psicanalista Sigmund Freud e do historiador Eric Hobsbawn, principalmente as reflexões contidas nas obras O mal estar na civilização e A Era dos extremos. Do primeiro tenta apreender o impulso destrutivo que caracterizaria a espécie, do segundo extrai uma compreenssão sutil dos extremos produzidos em um século de guerras, extermínios e tranformações estruturais amplas. O id parece se realizar por meio da ciência que converte  parte de suas promessas de domínio e libertação da humanidae frente à natureza em técnica de guerra, genocídios, extermínios e guerras. Estes processos, por sua vez, implicam na existência de seres reais, sujeitos que sonham, que sentem dor de dente, que torcem para um time, preferem uns livros a outros etc. É nesta dialética entre a experiência individual e as estruturas que a história do século XX se realiza. Tanto a esperança de liberdade que as revoluções comportam, quanto os sombrios momentos de guerra são feitos sobre e com tais sujeitos reais, que evidentemente fazem a sua história, mas sob determinadas condições. 
A “leitura” feita por Masagão recorre a uma costura poética e bem elaborada de imagens de arquivo e de obras cinematográficas. Não se coloca a distinção entre realidade e ficção. De fato é irrelevante se os personagens individuais existiram “realmente”, mas sim que a existência destes sujeitos é completamente verossímel. De outro lado, torna-se ainda mais verossímel a vinculação entre os destinos individuais e as estruturas históricas. O século XX revelou isso em sua totalidade.  
Cabe uma nota especial para esta maravilhosa montagem no que se refere à trilha sonora. A integração que ela opera entre as cenas é fantástica. Não porque manipule as imagens a ponto de convertê-las numa sequência linear, mas sim porque consegue captar os ritmos dialéticos que o processo histórico assume, sobretudo na modernidade.
A imagem do looping da montanha russa talvez seja uma metáfora que ajude a compreender a modernidade no século XX: uma sequência de movimentos distintos que deslocam os sujeitos ao mesmo tempo que os mantém presos na cadeira, momentos de segurança seguidos de insegurança. A inconstância, a impermanência, a transitoriedade seriam outras formas de traduzir a existência neste século que não inventa, mas experimenta radicalmente as consequências da modernidade.
Nada melhor para compreender este período do que recorrendo à forma estética mais caracteristica da modernidade: o cinema. Nós que aqui estamos por vós esperamos revela-se, neste sentido, como uma crônica privilegiada.   



Ficha técnica

Título original: Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos
Gênero: Documentário
Duração: 73 min
Ano de lançamento: 1998
Direção, roteito e produção: Marcelo Masagão
Música: Wim Mertens
Fotografia: Marco Túlio Guglielmoni
Temática Cine Delírio: Modernidade

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

As possibilidades do impossível



Uma casa grande? Uma tradição árabe-brasileira? Uma lavoura arcaica? Uns talvez encontrem tudo isso no filme de Luiz Fernando de Carvalho, outros talvez percebam mais que isso. O filme é denso mesmo, no sentido em que Gilbert Ryle define o conceito de denso. A história é narrada por André (Seltom Mello), que vive um amor desenfreado por Ana (Simone Spoladore). A subjetividade do narrador questiona a ética e a moral vigentes. É possível que todas as funções dos desejos humanos sejam contempladas nessa lírica exposição de sentidos que ao final se apresenta trágica. São quase três horas de filme em que a gente só bate a pestana porque não consegue conter a involuntariedade dos músculos das pálpebras.

O filme é fruto de uma leitura caprichada do livro homônimo de Raduan Nassar. Os atores dão um banho de interpretação. Ana não diz uma só palavra. Às vezes parece até que é um teatro filmado de alto nível. Nesse sentido, pelo menos quatro linguagens são convocadas para contar a história: a literatura, o cinema, a fotografia e o teatro. LavourArcaica é apenas uma história de uma pessoa que busca a felicidade, uma história muito bem contada, diga-se. Se essa pessoa busca a felicidade é por que ela não a tem no ambiente em que vive. A ilusão de encontrá-la em outros espaços logo se dilui e o retorno ao seio familiar parece abrir novas portas...

O filme traz à tona, entre outras discussões, a questão das relações entre uma tradição, que insiste em ser tradição, representada pela figura patriarcal (Raul Cortez), e uma proposta de inovação dos valores dessa mesma tradição, presente na figura de André. Quem vê o filme logo se embriaga com a tensão presente nos questionamentos angustiados de André, com os carinhos (incestuosos?) de sua mãe e com o cenário de uma casa grande, mediados pela sonoridade de uma música e uma dança que soam árabe, embora com citações de brasilidade.

Um filme para assistir pelo menos umas cinco vezes durante uma vida de 40 anos, quem pretende viver mais que isso que o assista mais vezes. Aproveite e mergulhe nos extras, cheios de depoimentos dos atores, diretores e demais pessoas conhecedoras da obra de Raduam Nassar, de Heidegger, de Rimbaud, de Artaud, entre outros malditos.

Serviço:
Lavoura Arcaica: Direção e roteiro de Luiz Fernando Carvalho, estrelado por Seltom Mello, Leonardo Medeiros, Simone Spoladore, Raul Cortez e Juliana Carneiro da Cunha. Fotografia de Walter Carvalho. Trilha sonora: Marco Antônio Guimarães. Prêmios: Melhor Contribuição Artística – Festival de Montreal – Canadá – 2001; Prêmio Especial de Júri: Festival de Biarritz – 2001; Prêmio do Público: 25ª Mostra BR de Cinema – São Paulo – 2001; Prêmio Ministério da Cultura – Festival Rio-BR 2001.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Esperando há Horas


Baseado no livro de Michael Cunningham, o filme As Horas possui uma estética bastante singular. Narrando a história de Três mulheres em diferentes períodos históricos, o diretor Stephen Daldry conseguiu fazer da película algo sensível e com uma profundidade que faz jus ao elenco de primeira, reunido pelo diretor.

A trama é divida em três partes, como pequenos contos, que são narrados de forma alternada, tendo como elemento de entrelaçamento o livro “Mrs. Dalloway”, que serve também como fio condutor entre as três protagonistas.

 Virginia Woolf (Nicole Kidman), uma mulher atormentada por angústias existenciais, foi levada em 1923 pelo marido para uma pequena cidade chamada Richmond, porque achava que os problemas da esposa estavam vinculados à Londres daquele período. Para escapar minimante das “vozes” que rondavam sempre em sua mente, Virginia escrevia. Esses escritos posteriormente tornaram-se o livro “Mrs Dalloway”. O filme também é uma mini-biografia da escritora que, dezoito anos depois da mudança, cometeu suicídio. Deixou vários livros, sendo que alguns como   “Orlando” foram cinematografados.

Laura Brown (Julianne Moore) é uma - aparentemente simples e satisfeita - dona de casa que vive em Los Angeles em 1953 em uma confortável casa, com um adorável filho, grávida de outro. Tem um marido apaixonado Dan (John C. Reilly) e sua vida parece perfeita dentro dos moldes e padrões daquilo que se entende como família. Desempenhando a função que lhe é exigida como mulher daquela época, Brown, no entanto, é extremante insatisfeita com sua vida; principalmente com relação à sua sexualidade. Ela tenta mudar sua condição, porém percebe que não é fácil transformar uma conjunta consolidada. Nesse contexto, o livro “Mrs Dalloway” aparece como elemento de identificação do sentimento de desprazer e descontentamento vivido respectivamente por seus mundos das diferentes personagens.

Vivendo em Nova Iorque, Clarissa Vaughn (Meryl Streep) é uma editora homossexual que tem dedicado seu tempo para cuidar de um amigo aidético. Richard (Ed Harris) é um poeta que acaba de ser escolhido para receber um prêmio por suas publicações. Clarissa tenta esquecer um pouco a banalidade da sua vida, ou melhor, tenta viver e compartilhar ativamente da vida de Richard. Se encontra ao ler o livro “Mrs. Dalloway”. 

Escolhido para a temática Cinema & Literatura, o filme transcende sem dúvida essa perspectiva, nos remetendo a diversas outras discussões como liberdade, paradigmas sociais e homossexualismo. De maneira sutil e inteligente, nos transporta minimamente para vida de uma das mais famosas escritoras britânicas. 

  Por Paulo Alberto

·  Informações Técnicas
Título no Brasil:  As Horas
Título Original:  The Hours
País de Origem:  EUA / Reino Unido
Gênero:  Drama
Tempo de Duração: 115 minutos
Ano de Lançamento:  2002
Site Oficial: 
Estúdio/Distrib.:  Imagem Filmes
Direção: 
Stephen Daldry
 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Linguagem própria

Somos contadores e consumidores de estórias. Vestimos nossas estórias de diversas maneiras (passeando pelos diversos gêneros discursivos) e as apresentamos em diversos suportes (mídias). Quando uma mesma estória é contada através de duas maneiras diferentes, é interessante observar o que muda de uma pra outra. No caso de Budapeste, estamos diante de um livro - escrito por um músico - que virou filme. Tanto o livro quanto o filme lançam mão de uma linguagem própria: a da literatura e a do cinema.

É comum que as pessoas que leram um livro se decepcionem ao ver o filme do livro. A poesia se perde, o encanto e a imaginação despertados durante a leitura individual recebem a forma do roteiro do filme - que não corresponde às imagens e sensações criadas durante a leitura.

Eu vi primeiro o filme. A atuação de Leonardo Medeiros é apaixonante, Giovana Antonelli conseguiu ficar feia e Walter Carvalho provou que é fera de fotografia. Ao sair do cinema, não fiquei pensando na estória, nos personagens, na paixão súbita por uma língua estrangeira, na cidade de Budapeste. Fiquei intrigada pra saber como o livro lidou com certas questões interessantes no filme. Na verdade, pensei o livro a partir do filme, invertendo a ordem natural das coisas.

Costa é um ghost-writer que pousa em Budapeste por acaso e se apaixona pela cidade, pela língua e pela professora de húngaro. No filme, Costa aprende húngaro - em húngaro! - e os espectadores leem as legendas. O cinema dispõe desse recurso: a legenda. Fiquei muito curiosa para saber como essa questão tinha sido resolvida no livro. O livro seria bilíngue? Teriam sido usadas cores diferentes, como acontece na História sem fim, de Michael Ende? Teriam sido introduzidas imagens, como acontece em Extremely loud and incredibly close, do Jonathan Safran Foer? 

Outra coisa que de repente se mostrou como sendo parte da linguagem própria do cinema era a trilha sonora: como um livro dá o tom a uma cena? Chico Buarque escreveu frases curtas (à la Lourenço Mutarelli, especialmente no Cheiro do ralo) em cenas de ação e/ou frases infinitas (à la Saramago) para prender a atenção do leitor? 

O movimento de câmera foi um outro recurso específico do cinema que chamou atenção. Quando a câmera fixada no rio que corta Budapeste gira 180°, o espectador entende que o mundo de Costa ficou de ponta cabeça. Como se escreve isso?


Li o livro de uma sentada. Li com o estômago, não com os olhos. Assim que terminei, logo botei num envelope e mandei prum amigo do outro lado do mundo, tal era a urgência de compartilhar aquela leitura. Nenhuma das questões que tinham me conduzido ao livro continuou sendo interessante, porque o livro apresenta sua linguagem própria: a metalinguagem. Pra dar um gostinho, recortei um trecho do livro:

Porque logo no início do casamento, ainda modesto escritor, fui para ela sem dúvida um marido admirável. Mas à medida que aprimorava minha literatura, naturalmente comecei a me relaxar no trato com a Vanda. De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando os textos, mimando cada palavra que punha no papel, não me sobravam boas palavras para ela. Diante dela nem tinha mais vontade de me manifestar, e quando o fazia, era para falar bobagens, lugares-comuns, frases desenxabidas, com erros de sintaxe, cacófatos. E se alguma noite, na cama com ela, me viessem à boca palavras adoráveis, eu as continha, eu as economizava para futuro uso prático.
Budapeste, Chico Buarque, p. 106 - 107.


(Budapeste, 2009) 

Direção: Walter Carvalho
Roteiro: Chico Buarque de Hollanda (romance), Rita Buzzar (roteiro)
Gênero: Drama
Origem: Brasil/Hungria/Portugal
Duração: 113 minutos
 Tipo: Longa-metragem