Robson dos Santos
O século XX experimenta a modernidade em suas múltiplas configurações e potencialidades, sobretudo as destrutivas. Neste curto, porém extremo período, os indivíduos, as classes e as sociedades são lançadas em uma experiência social, política e cultural que aprofunda as reconfigurações e referências que já emergiam em períodos anteriores. Ciência, produção em massa, consumismo, revoluções, movimentos sociais, burocratização, guerras e a destruição definem a identidade do século XX. Daí a morte e a sua parada definitiva, o cemitério, representarem o fio condutor da montagem visual de Nós que aqui estamos por vós esperamos, documentário brasileiro de Marcelo Marsagão construido sobre imagens, cenas e personagens, reais e fictícios, do século passado.
O filme possui como inspiração “teórica” as obras do psicanalista Sigmund Freud e do historiador Eric Hobsbawn, principalmente as reflexões contidas nas obras O mal estar na civilização e A Era dos extremos. Do primeiro tenta apreender o impulso destrutivo que caracterizaria a espécie, do segundo extrai uma compreenssão sutil dos extremos produzidos em um século de guerras, extermínios e tranformações estruturais amplas. O id parece se realizar por meio da ciência que converte parte de suas promessas de domínio e libertação da humanidae frente à natureza em técnica de guerra, genocídios, extermínios e guerras. Estes processos, por sua vez, implicam na existência de seres reais, sujeitos que sonham, que sentem dor de dente, que torcem para um time, preferem uns livros a outros etc. É nesta dialética entre a experiência individual e as estruturas que a história do século XX se realiza. Tanto a esperança de liberdade que as revoluções comportam, quanto os sombrios momentos de guerra são feitos sobre e com tais sujeitos reais, que evidentemente fazem a sua história, mas sob determinadas condições.
A “leitura” feita por Masagão recorre a uma costura poética e bem elaborada de imagens de arquivo e de obras cinematográficas. Não se coloca a distinção entre realidade e ficção. De fato é irrelevante se os personagens individuais existiram “realmente”, mas sim que a existência destes sujeitos é completamente verossímel. De outro lado, torna-se ainda mais verossímel a vinculação entre os destinos individuais e as estruturas históricas. O século XX revelou isso em sua totalidade.
Cabe uma nota especial para esta maravilhosa montagem no que se refere à trilha sonora. A integração que ela opera entre as cenas é fantástica. Não porque manipule as imagens a ponto de convertê-las numa sequência linear, mas sim porque consegue captar os ritmos dialéticos que o processo histórico assume, sobretudo na modernidade.A imagem do looping da montanha russa talvez seja uma metáfora que ajude a compreender a modernidade no século XX: uma sequência de movimentos distintos que deslocam os sujeitos ao mesmo tempo que os mantém presos na cadeira, momentos de segurança seguidos de insegurança. A inconstância, a impermanência, a transitoriedade seriam outras formas de traduzir a existência neste século que não inventa, mas experimenta radicalmente as consequências da modernidade.
Nada melhor para compreender este período do que recorrendo à forma estética mais caracteristica da modernidade: o cinema. Nós que aqui estamos por vós esperamos revela-se, neste sentido, como uma crônica privilegiada.
Ficha técnica
Título original: Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos
Gênero: Documentário
Duração: 73 min
Ano de lançamento: 1998
Direção, roteito e produção: Marcelo Masagão
Música: Wim Mertens
Fotografia: Marco Túlio Guglielmoni
Temática Cine Delírio: Modernidade