domingo, 27 de junho de 2010

Mad Max e a distopia real

Robson dos Santos


A distopia pode ser definida como uma forma de discurso político sobre o futuro. Assim como a utopia, trata-se de uma construção ideológica e premonitória sobre um mundo ainda inexistente, sobre as possibilidades de organização social profundamente distintas das atuais. As semelhanças se encerram por aí. Diferentemente da utopia, a distopia concebe um futuro marcado pela degradação, pela violência, pelo autoritarismo radical, por condições quase impossíveis para a vida humana e pela ausência de esperanças e liberdades. A distopia é o contraponto pessimista da utopia. Ambas, porém, dizem mais da época em que são produzidas do que sobre o futuro. Mad Max II - A caçada continua é um dos ícones distópicos da distópica década de 80 e (por que não?) das seguintes. Esta pode ser uma maneira profícua de entender o filme.

A narrativa está contextualizada em um mundo que esgotou seus recursos energéticos. A disputa por petróleo fomentou uma guerra destrutiva entre as potências globais, que confluiu na destruição quase completa da civilização. O planeta se torna uma grande arena da barbárie, um lugar deserto, sem vegetação verde, sem sombras, sem leis e dominado por gangues assassinas. Os últimos seres humanos vivem uma violência motorizada, numa terra quente, seca, submetida à ausência de qualquer norma, excetuando a violência. Todos parecem sujos, famintos, todos precisam de um banho, mas o que perseguem, sobretudo, é a gasolina. Esta é um instrumento de poder e dominação, a moeda universal. Os que dispõem de combustível podem colocar seus carros e motos customizados e barbarizados para impetrar a banalidade do mal e controlar o mundo de desertos e asfaltos. Só há uma alternativa neste planeta: fugir permanentemente, sem um plano para tal, sem um rumo em particular.


Frente a tal situação, o herói da narrativa se distigue muito pouco dos vilões. Max, interpretado por Mel Gibson, é um indivíduo sem um destino, sem esperanças e que vive sob o sofrimento de ter perdido a família. Em seu envenenado carro ele também vaga atrás de combustível. É neste contexto que ele encontra uma pequena fortaleza que protege uma comunidade no meio do deserto. Diferentemente dos bárbaros que os cercam, interessados no combustível que guardam, os moradores deste local abrigam um resquício de solidariedade e humanidade. Max irá tentar guiá-los na fuga que planejam fazer para um mundo verde, fresco, com água e sem violências.


Max não crê neste outro mundo, não crê que eles sejam capazes de fugir, não crê que sobrevivam às gangues que os atacam. Max reencontrou entre eles, porém, alguns laços de solidariedade e afetividade que justificam arriscar a vida para defender.


O filme foi produzido no início da década de 80. As recordações da crise do petróleo na década anterior ainda eram recentes. Invadir países para tomar seus recursos já era uma realidade concreta. Além disso, a desestruturação social trazida pela crise do socialismo e do welfare state e a emergência do neoliberalismo sinalizavam para uma desertificação dos projetos políticos. Em Mad Max predomina o individualismo, o “salve-se quem puder”, a degradação, o darwinismo social e a lei do mais forte.


O filme produz uma imagem distópica profundamente enraizada na década de 80. Isso vale tanto para seus fundamentos ideológicos quanto para as condições de produção do filme. A estética kitsch homenageia a predominância da cultura pop. Os carros adaptados como extensão dos corpos denotam a posição deste bem na sociedade de consumo, onde, paradoxalmente, não há muito que consumir. Os visuais escandalosos buscam ressaltar corpos animalizados, nos quais as roupas lembram mais peles e couros de animais do que vestimentas.


Resta ainda fazer algumas perguntas não para o filme, mas a partir dele: o futuro em Mad Max é o nosso presente, aqui e agora? Um olhar distópico é a única possibilidade que o presente oferece? Eis algumas questões lançadas no deserto à procura de respostas.


Ficha Técnica

Título Original: Mad Max 2: The Road Warrior
Gênero: Ação
Duração: 94 minutos
Lançamento: Austrália, 1981
Atores: Mel Gibson, Bruce Spence , Michael Preston , Max Phipps , Vernon Wells , Kjell Nilsson
Direção: George Miller
Roteiro: Terry Hayes, George Miller e Brian Hannat
Produção: Byron Kennedy
Música: Brian May
Fotografia: Dean Semler
Direção de Arte: Graham Walker

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Tele-visão

451° F é a temperatura em que papel pega fogo. Na sociedade criada por Ray Bradbury em 1953 e filmada por Truffaut em 1966, os bombeiros têm a função de queimar os livros, não combater o fogo ou salvar vidas. Ray Bradbury escreveu o romance distópico Fahrenheit 451 numa biblioteca. Este romance é uma declaração de seu amor pelos livros.

Na sociedade totalitária criada no livro e recriada no filme, os livros e a leitura são proibidos. Não é dado às pessoas tempo para a leitura e reflexão. Desde crianças, as pessoas são mantidas ocupadas. Fazem esportes, assistem televisão e participam da programação da televisão. As paredes das casas são transformadas em telas de TV e o sonho de consumo do indivíduo é ter as quatro paredes da sala tomadas pelas televisões em cujas novelas podem atuar. O desejo geral é ser igual, é viver a vida de personagens de telenovela, por fim, consumir imagens.

Televisão é uma palavra composta, que pode ser segmentada da seguinte forma: tele- vem do grego e significa 'à distância' (daí telescópio, telepatia, telegrama) e visão é português mesmo. Ao criticar o poder da televisão e cultura de massa de modo geral, Ray Bradbury escreveu um romance visionário. Infelizmente, seu medo de que as pessoas trocariam a lavagem cerebral televisionada pela leitura já se concretizou.

A leitura não está ausente da obra Fahrenheit 451: Montag, o protagonista, que é um bombeiro, se interessa pelo material que censura e se torna um leitor. De início, a leitura é difícil: os dedos lêem, os lábios acompanham, lê-se tudo (até a ficha catalográfica das obras salvas do fogo). Com o tempo, mais leitores são descobertos, e a leitura se torna tão natural, que as pessoas se tornam livros. Com as leituras, aumenta o número de diálogos sobre reflexões, visões de mundo, experiências de leitura.

Apesar de ser bastante fiel ao livro, o filme silencia dois elementos importantes do livro: quando o protagonista começa a ler, os cães-robôs que apoiam os bombeiros começam a se voltar contra Montag. As máquinas, além dos bombeiros, perseguem os livros e os leitores. Talvez por uma questão técnica, os cães não tenham entrado no filme. Outro elemento importante no livro que não aparece no filme é um personagem, Faber, que representa a resistência dentro da sociedade e ensina o caminho para um outro foco de resistência fora da cidade.


titulo original: (Fahrenheit 451)
lançamento: 1966 (Inglaterra)
direção: François Truffaut
atores: Oskar Werner , Julie Christie , Cyril Cusack , Anton Diffring , Anna Palk
duração: 112 min
gênero: Ficção Científica

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Lua de mel?


Nigel (Hugh Grant) é o nosso olho na película. É através dele que tomamos conhecimento da multifacetada relação de Oscar (Peter Coyote) e Mimi (Emanuele Seigner, esposa de Polanski quando o filme foi rodado). Nigel e sua esposa Fiona (Kristin Scott Thomas) partem em uma viagem à Índia, numa espécie de terapia marital; uma tentativa de salvar, ou "apimentar", um relacionamento em franca decadência. E é durante essa pretensa segunda lua de mel que a história de Oscar e Mimi é contada.
Oscar sempre teve o sonho de ser um reconhecido escritor e após receber uma milionária herança tem a possibilidade de se mudar para a França, seguindo os passos de uma série de outros escritores por ele admirados. No entanto, se frustra com a literatura: torna-se um escritor sem leitores. Este fracasso nas letras é sublimado através de uma vida sexual verdadeiramente ativa. Quando relata a Nigel, em estilo claramente literário, a história de sua relação com Mimi, retrata a obsessão que o acomentera  após encontrar Mimi no ônibus 96. O fracassado escritor fala de como não conseguia dormir, escrever, nem fazer nada enquanto não reencontrasse a moça de sapatinho branco.  
Ao reaproximar o escritor de sua deusa de vestido de bolinhas e sapatinho branco, Polanski visivelmente caricatura o amor de conto de fadasIsto fica muito claro nos elementos utilizados pelo diretor  para retratar essa primeira "fase" do intenso relacionamento de Oscar e Mimi: o sapatinho branco, uma clara alusão à Cinderela; a construção medieval do restaurante (que lembra um castelo) em que reencontra Mimi na cena que antecede a ida do casal para o seu "claustro amoroso"; as cenas do parque de diversões; entre várias outras.
            A  história de amor que é contada com fortes doses de erotismo até que o escritor começa a questionar seus sentimentos, claramente assombrado pela sua forma de conduzir seus relacionamentos antes de se encantar por Mimi. Para ele, os casais deveriam se manter juntos até alcançar o clímax de sua relação, depois disso os relacionamentos naturalmente tenderiam para a decadência - que deveria ser evitada. Ele acreditava que com Mimi o ápice da relação teria sido alcançado e era chegada a hora do adeus. No entanto, Oscar não consegue pôr um fim ao relacionamento, porque durante um bom tempo a voluptuosa Mimi faz com que os horizontes sexuais do casal sejam cada vez mais expandidos, adiando o fim da relação.
            O sadomasoquismo, explorado estritamente durante o "jogo sexual" ao longo da primeira fase da relação, passa a ser a estrutura da "segunda fase". Mimi, incapaz de compartilhar da leitura que Oscar faz do relacionamento, se submete a qualquer coisa para preservar a relação. Tal atitude fornece as condições para que o sadismo de seu amado aflore. O escritor vai tornando cada vez mais atroz o tratamento dispensado à companheira que, aos poucos, vai perdendo até os seus encantos estéticos. Com boas lembranças de Mimi, Oscar considerava que era a hora de explorar novos corpos. Mimi continua, com assustadora resignação, resistindo à tortura psicológica a que seu amado a submete. Oscar desiste de esperar que ela ponha por si mesma um fim à relação e, num astuto estratagema, a despacha para Martinica.
            Livre de Mimi, Oscar procura com descomunal dedicação recuperar o tempo perdido. Deixa de escrever e passa a viver como um morcego, indo dormir pela manhã e partindo em busca de novos corpos à noite. Desta forma dois anos se passam, até que no desfecho de uma noitada em que Oscar tentava fazer um ménage à trois, ele é atropelado. Ele vegeta sozinho durante dias no hospital se recuperando do acidente. Sua primeira visita, para seu espanto, é Mimi que aparece novamente no esplendor da sua beleza, mais madura e segura de si.
            Mimi o joga ao chão, o que deixa Oscar paraplégico, mas ela não sofre qualquer sanção. Esse talvez seja o ponto mais fraco do filme. Fragilidades à parte, este acontecimento é fundamental para a trama de "Lua de Fel", pois permite que a relação ressuscite com uma inversão completa de papéis. O sadomasoquismo aparece novamente, e não é à toa, pois nada que faz parte da trama de uma obra fílmica é gratuito. A explicação para os papéis da relação serem invertidos de modo tão brusco e com tamanha resignação pode ser buscada a partir dos conhecimentos em Psicologia do diretor do filme. O sadomasoquismo se estabelece quando existe um sádico para bater e um masoquista para apanhar. Contudo, tanto os sádicos são potencialmente masoquistas quanto os masoquistas são potencialmente sádicos.
            A explicação do masoquismo mais difundida na Psicologia afirma que o sadomasoquismo se instaura quando os sujeitos de uma relação se negam a enxergar os pontos obscuros e negativos de uma determinada relação. Esses pontos aparecem diversas vezes no filme de Polanski: Oscar defende a sua tese de que todo relacionamento, após alcançar o clímax, tende para a decadência. Não obstante, diversas vezes durante o filme ele o relacionamento se renovar através da exploração de novos horizontes sexuais, ou seja, de novos aspectos positivos. A relação de Oscar e Mimi é claramente dependente de novas experiências, porque ele não consegue aceitar outra perspectiva para o relacinamento que não esta viciada no gozo do singular, do inédito.
Polanski carrega nas cores em todas as fases da relação, o que  pode causar certa confusão no espectador, porque para além de todo frisson  e conturbação expostos com a relação, a  mensagem do filme é transmitida de modo extremamente sutil: quando os aspectos negativos de uma relação são desprezados, essa relação ou desemboca em algo doentio ou fracassa. Desta forma, não é à toa que a pretensa segunda lua de mel de Nigel e Fiona se torna uma "lua de fel". 
Por Guilherme Veppo