sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Linguagem própria

Somos contadores e consumidores de estórias. Vestimos nossas estórias de diversas maneiras (passeando pelos diversos gêneros discursivos) e as apresentamos em diversos suportes (mídias). Quando uma mesma estória é contada através de duas maneiras diferentes, é interessante observar o que muda de uma pra outra. No caso de Budapeste, estamos diante de um livro - escrito por um músico - que virou filme. Tanto o livro quanto o filme lançam mão de uma linguagem própria: a da literatura e a do cinema.

É comum que as pessoas que leram um livro se decepcionem ao ver o filme do livro. A poesia se perde, o encanto e a imaginação despertados durante a leitura individual recebem a forma do roteiro do filme - que não corresponde às imagens e sensações criadas durante a leitura.

Eu vi primeiro o filme. A atuação de Leonardo Medeiros é apaixonante, Giovana Antonelli conseguiu ficar feia e Walter Carvalho provou que é fera de fotografia. Ao sair do cinema, não fiquei pensando na estória, nos personagens, na paixão súbita por uma língua estrangeira, na cidade de Budapeste. Fiquei intrigada pra saber como o livro lidou com certas questões interessantes no filme. Na verdade, pensei o livro a partir do filme, invertendo a ordem natural das coisas.

Costa é um ghost-writer que pousa em Budapeste por acaso e se apaixona pela cidade, pela língua e pela professora de húngaro. No filme, Costa aprende húngaro - em húngaro! - e os espectadores leem as legendas. O cinema dispõe desse recurso: a legenda. Fiquei muito curiosa para saber como essa questão tinha sido resolvida no livro. O livro seria bilíngue? Teriam sido usadas cores diferentes, como acontece na História sem fim, de Michael Ende? Teriam sido introduzidas imagens, como acontece em Extremely loud and incredibly close, do Jonathan Safran Foer? 

Outra coisa que de repente se mostrou como sendo parte da linguagem própria do cinema era a trilha sonora: como um livro dá o tom a uma cena? Chico Buarque escreveu frases curtas (à la Lourenço Mutarelli, especialmente no Cheiro do ralo) em cenas de ação e/ou frases infinitas (à la Saramago) para prender a atenção do leitor? 

O movimento de câmera foi um outro recurso específico do cinema que chamou atenção. Quando a câmera fixada no rio que corta Budapeste gira 180°, o espectador entende que o mundo de Costa ficou de ponta cabeça. Como se escreve isso?


Li o livro de uma sentada. Li com o estômago, não com os olhos. Assim que terminei, logo botei num envelope e mandei prum amigo do outro lado do mundo, tal era a urgência de compartilhar aquela leitura. Nenhuma das questões que tinham me conduzido ao livro continuou sendo interessante, porque o livro apresenta sua linguagem própria: a metalinguagem. Pra dar um gostinho, recortei um trecho do livro:

Porque logo no início do casamento, ainda modesto escritor, fui para ela sem dúvida um marido admirável. Mas à medida que aprimorava minha literatura, naturalmente comecei a me relaxar no trato com a Vanda. De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando os textos, mimando cada palavra que punha no papel, não me sobravam boas palavras para ela. Diante dela nem tinha mais vontade de me manifestar, e quando o fazia, era para falar bobagens, lugares-comuns, frases desenxabidas, com erros de sintaxe, cacófatos. E se alguma noite, na cama com ela, me viessem à boca palavras adoráveis, eu as continha, eu as economizava para futuro uso prático.
Budapeste, Chico Buarque, p. 106 - 107.


(Budapeste, 2009) 

Direção: Walter Carvalho
Roteiro: Chico Buarque de Hollanda (romance), Rita Buzzar (roteiro)
Gênero: Drama
Origem: Brasil/Hungria/Portugal
Duração: 113 minutos
 Tipo: Longa-metragem

3 comentários:

Anônimo disse...

Eu não gostei do filme mas ele despertou minha curiosidade pra ler o livro..

Anônimo disse...

cadê a resenha do próximo filme?
levando em consideração que o filme será exibido amanhã, acho que já deveria estar disponível!

Nábila Raiana disse...

budapeste surpreendeu.. .. um filme que mostra a beleza das línguas, apesar de eu não gostar mt da relação que José Costa tem com sua literatura, uma vez que só se aquieta quando tem o reconhecimento do público, de todos.
Bom!