quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Perdidos no tempo

Estou perdida no tempo. Passei uma semana fora e quando voltei, não me dei conta de que o tempo aqui tinha passado. Na minha percepção, eventos do passado e presente estavam alocados no futuro. No entanto, Lola já tinha corrido e fui aboiada para a sessão no SESC enquanto o filme era exibido. Isto significa que esta resenha é, diferente das outras, um post scriptum.

O primeiro filme exibido foi o curta de 15 minutos Morte. de José Roberto Torero. Laura Cardoso e Paulo José fazem o casal que se engaja nos preparativos para a própria morte. Passeiam pelo cemitério escolhendo lápides e flores, encomendam o caixão, ensaiam o funeral com os amigos, redigem o testamento e arrumam as malas. Quando tudo está pronto, esperam a Morte chegar. Mas a Morte não avisa quando vem visitar.

Semelhante desorientação no tempo é trabalhada no conto dOs sete enforcados, de Leonid Andreiev. Os sete personagens do escritor russo são condenados à forca. Ao contrário do casal do curta, os sete sabem exatamente quando morrerão, e o conto todo se desenrola sobre como eles ocupam seu tempo até a chegada da morte programada. Em ambos os casos, o modo como se aproveita o tempo antes do ponto final é tematizado. No curta, um período de tempo de vida é preenchido com preparativos para a morte. No conto, um período de tempo semelhante é preenchido com tentativas de contornar o momento derradeiro.

O outro filme da noite foi Aboio, de Marília Rocha. Trata-se de um documentário lindíssimo que leva a assinatura da documentarista mineira. Marília Rocha deixa a câmera filmando depois de obter a resposta do entrevistado, esperando por uma eventual continuidade. Com a curiosidade de uma criança, ela foca na garganta de onde sai o som, como se buscasse o momento em que é produzido. Por vezes, ouvimos sua voz, mais raramente seus comentários sobre a filmagem. Enfim, percebemos seu estilo de contrapor um clímax com uma cena contemplativa. Nessas cenas, em que pássaros rodeiam no céu, podemos ruminar as imagens vistas, as estórias narradas, o aboio e o olhar manso do boi.

Também aqui podemos observar um descompasso. Em algumas cenas, o som é editado de tal maneira que o vaqueiro que vemos contando causo não enuncia a voz que ouvimos do narrador. Em outro momento, o som é cortado enquanto vemos o vaqueiro tampando o ovido esquerdo e cantando com o diafragma. Os depoimentos de vaqueiros que não valorizam o traje de couro e que se renderam à carreta que transporta o gado pelo asfalto estão no início do documentário (e mais perto da atualidade), enquanto os depoimentos de vaqueiros que aboiavam desde meninos e que seguem a tradição estão no final da película (e mais presos no passado). Por fim, há imagens captadas com a câmera Super 8 costurando toda a obra.

Marília Rocha brinca com o tempo quando dá voz a diferentes gerações: velhos vaqueiros e Lirinha, vocalista do recém-extinto Cordel do Fogo Encantado. Ela fixa o tempo da tradicional prática do aboio quando faz o documentário que registra as estórias, os falares, os cantos, os rostos, as rugas, a transformação do tempo. Através das imagens de Super 8, cria um efeito de antigo que serve de guia para o futuro. Através do canto, nos guia pelos sertões da Bahia, Pernambuco e Minas.

Apesar de serem filmes datados, nos mostram como estamos perdidos em relação à linha do tempo: incapazes de prever o fim do nosso tempo na Terra, desconhecemos algumas tradições que nos transcendem e preenchemos o nosso tempo com a busca do progresso, desenvolvimento e dinamismo.

Morte.
Direção e roteiro: José Roberto Torero
Elenco: Laura Cardoso e Paulo José
Gênero: Ficção
Duração: 15 minutos
Ano: 2002.

Aboio
Direção: Marília Rocha
Gênero: Documentário
Duração: 73 minutos
Ano: 2005.

Nenhum comentário: