Dolls, de Takeshi Kitano, recorre ao Teatro Bunraku para contar três histórias que, unificadas pelo “casal-boneco” Matsumoto e Sawako, tentam mostrar ao espectador, além das obsessões das personagens, uma bela, sensível e silenciosa crítica à sociedade japonesa contemporânea. Através do recurso do coro da tragédia clássica grega, somos apresentados a homens obcecados pelo poder, por dinheiro e por suas culpas; e mulheres obcecadas pelo casamento, pela beleza, pela espera, pelo silêncio.
A estória que costura as outras estórias com um fio vermelho é a tragédia de Matsumoto, que é manipulado pelos pais para casar-se com a filha de seu chefe, apesar de ser noivo de Sawako. Contudo, antes da cerimônia do casamento, abandona tudo ao saber que Sawako havia tentado o suicídio. Assim, de forma obsessiva, une-se a quem parece de fato amar: Sawako. Mas é tarde, ela encerra-se em si mesma e torna-se uma boneca, - mas permanece senhora de suas próprias vontades (e obsessões). Para controlar esses desejos e obsessões, Matsumoto a prende nele mesmo com uma corda. Essa corda vermelha simboliza o apego desmedido que caracteriza a obsessão do casal. Acorrentados um ao outro, vagam pelo Japão, pelas estações do ano, pelas outras estórias. O fio vermelho ainda costura o presente com flashbacks e as duas pontas do filme.
Na segunda estória, acompanhamos Hiro, um alto membro da Yakuza (máfia japonesa) que, ao sentir-se à beira da morte, tenta reencontrar seu antigo amor. Amor este abandonado por ele para sair em busca de riqueza e poder (paralelamente ao que Matsumoto estava prestes a fazer). Trinta anos depois de ter sido anbandonada num banco de praça, vemos a antiga namorada de Hiro, rotineira e obsessivamente, insistindo em esperar com o almoço no banco onde costumavam se encontrar.
A terceira estória envolve Haruna Yamaguchi, uma cantora que, após um acidente, passa a viver reclusa com vergonha de seu rosto deformado. Ela recebe a visita de um único fã, um rapaz cego. Trata-se de Nukui que feriu os próprios olhos para manter intacta sua obsessão pela cantora.
O filme possui uma belíssima fotografia, transitando pelos obsessivamente organizados e limpos parques, ruas, pontes e viadutos. A câmera costura um cenário aberto, livre, sem grandes obstáculos. Ao contrário de como são tratados os próprios personagens: presos uns aos outros quer seja por sentimentos de culpa, arrependimento, amor, obsessão, quer seja por uma corda, uma cadeira de rodas ou mesmo a ignorância.
O penúltimo filme de Takeshi Kitano, Dolls (2002), é diametralmente oposto aos outros. Apelando para as emoções do espectador, captura-o pela fotografia sublime. Em Zatoichi (2003) e Hana-Bi - Fogos de artifício (1997), por exemplo, a violência se dá de forma bruta, coreografada, visual. Em Dolls não temos a Yakuza, mas a estrutura da sociedade japonesa esmagando os personagens. Não há gritos nem diálogos, há silêncios e olhares que traduzem emoções. Não é um filme quebra-cabeça, sobre o qual é preciso falar para alcançar-lhe a lógica, mas um filme que - sem palavras - dialoga com as sensações.
De fato, Dolls é um filme de poucos diálogos. Parece ser a proposta do diretor-roteirista de fazer um filme para ser mais visto do que escutado. Mas o fato de ser silencioso não faz de Dolls um filme apático, mudo. Seus personagens gritam por meio de gestos mecanizados, controlados, repetitivos. Revelam suas angústias e obsessões por meio de seus atos extremados, suas expressões, seus olhares, seus sentidos ou silêncio. Talvez seja uma tentativa de “mostrar” a sociedade japonesa, cuja comunicação é mais pautada em gestos, símbolos e olhares, se comparada à ruidosa sociedade ocidental. Marc Ferro, historiador francês estudioso de cinema, alerta-nos da necessidade de perceber a imagem fílmica (com ou sem som) tal como um texto, e como tal, possuidora de um autor, de um contexto e de elementos de reflexão e crítica da sociedade na qual foi produzido ou reproduz. Assim, não há como assistir ao filme Dolls sem levar em conta a forte presença dos valores culturais japoneses de auto-afirmação, da superação racional, do machismo extremado, do excesso de controle social.
Esta sociedade é muito bem representada por uma de suas modalidades clássicas de teatro, conhecida como Bunraku. No teatro japonês Bunraku, mais de um homem controla, de forma sincronizada, bonecos bem elaborados, bem feitos, bem trajados, de maneira tal que parecem possuir vida própria. Não por acaso dois bonecos iniciam e encerram o filme. Seria uma provocação do diretor para fazer ver o que resta de humano em nossa sociedade, seja ela oriental ou ocidental? Qual o sentido da vida e de ser humano quando nos tornamos marionetes obsessivamente controladas por vaidades, ciúme, culpa, ou mesmo o amor?
Realizado por Takeshi Kitano
País: Japão
Ano: 2002
Duração: 113 min.
Com: Kanno Miko, Nishijima Hidetoshi, Mihashi Tatsuya, Matsubara Chieko, Fukada Kyoko, Tageshige Tsutomu, Omori Nao.
Por Marcelo Sabino e
Lou-Ann Kleppa
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