terça-feira, 22 de maio de 2012

1970 – 2014: a indiferença dos escravos


Por Paulo Morais

Para o poeta mexicano Octavio Paz, a liberdade não é uma filosofia, mas um movimento da consciência que, em certos momentos da vida, leva o indivíduo a pronunciar um destes dois monossílabos: “sim” ou “não”.  Dito desta maneira, parece que o ato de escolher uma destas palavras é uma tarefa fácil. Como pode ser visto em vários momentos do filme Pra frente Brasil (Roberto Farias, 1982), até as escolhas aparentemente irrelevantes, como dividir uma corrida de táxi com outra pessoa, são acompanhadas de consequências. Diferente dos outros animais, o primata bípede com seu grande córtex cerebral não é somente o resultado daquilo que o seu código genético está programado a ser. Ao contrário dos outros animais que não têm outra alternativa senão viver da maneira que estão naturalmente destinados a viver, a vida dos seres humanos não é a simples repetição dos padrões da espécie. Por meio de “sins” e “nãos”, cada indivíduo é livre para inventar e escolher sua forma de vida e o seu destino, mas a metafísica envolvida na tarefa de escolher um destes dois monossílabos é tão complexa que escolhemos até quando nos esquivamos de escolher ou deixamos que outros escolham por nós.

            Durante a copa do mundo de 1970, época em que o Brasil apresentava índices inéditos de crescimento econômico e o governo do presidente Médici instaurava um clima de perseguição e terror aos opositores da ditadura militar, Jofre G. Fonseca (Reginaldo Faria), um cidadão, trabalhador e pagador dos seus impostos, bom pai, bom marido, mas sonso demais e tão débil mental quanto tantos outros trabalhadores da recém-criada classe média brasileira, é sequestrado por membros de uma milícia e torturado até a morte. Enquanto seu irmão e sua esposa tentam encontrá-lo, os diferentes personagens deixam claro que o regime ditatorial não foi mantido somente pela força dos golpistas, mas pelo comodismo e indiferença daqueles que eram livres para dizer “sim”, quando escolheram dizer um cômodo ou medroso “não”.

            Se, em 1970, pessoas morriam e não saía nos jornais por causa da censura, às vésperas da copa de 2014, os jornais não precisam ser censurados. O Estado já não precisa maquiar as notícias que falam das desigualdades e injustiças sociais, da vergonhosa concentração de renda, da flagrante exploração da pobreza ou das mortes causadas pelo descaso e corrupção governamental. Inebriada pelo sentimento ufanista gerado pelas facilidades de crédito, religiões empresariais, distrações midiáticas, marketing diuturno e crescimento econômico fundado em capital especulativo, a brava classe média brasileira se esconde atrás das grades de sua jaula domiciliar e, distraída e cansada, esquece que tem a liberdade de refletir: “Que direito, meu Deus? O que eu tô fazendo aqui? [...] Eu sou uma pessoa comum, com emprego, documento, família e pago imposto. Ninguém tem direito de fazer isso comigo”.

            Como preconizado na música Panis Et Circenses (Os Mutantes), dois anos antes da copa de 1970, os escravos-felizes, cômodos em frente a TV na sala de jantar, estavam ocupados em nascer e morrer (como qualquer outro animal não humano), enquanto pessoas perdiam suas vidas por insistirem em ser livres para dizer “não” aos torturadores que lhes exigiam respeito nos porões do DOI-CODI.

            Alguém já disse que o mal do mundo não são os tiranos, mas os indiferentes. 

Ano: 1982
Direção: Roberto Farias
País: Brasil
Duração: 105 min.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Então...

hoje, dia 17 de maio de 2012, foi deflagrada a greve nacional dos docentes. A duras penas, já aprendemos que não adianta fazer cineclube no campus quando não tem aulas, porque não tem alunos. Portanto, a sessão de hoje fica suspensa e vamos nos organizar para, a partir da semana que vem, voltar ao esquema cinegreve na escadaria da Reitoria.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Níveis de liberdade


A peça de teatro de autoria de Bosco Brasil Novas diretrizes para tempos de paz foi transformada em filme por Daniel Filho: Tempos de Paz. A narrativa se passa em 1945, depois do fim Segunda Guerra, quando aporta no Brasil um navio carregado de imigrantes. Um deles, o senhor Klausewitz (Dan Stulbach, altamente convincente no papel de imigrante autodidata), já chamava atenção de uma polonesa no navio. (Mas quem não entende polonês fica a ver navios nessa parte, porque não há legendas.) Na alfândega, Klausewitz chama atenção das autoridades: não tem bagagem, se diz agricultor e recita um poema de Drummond.


Suspeito de ser espião nazista, Klausewitz é retido e interrogado por um agente da polícia política de Getúlio Vargas, Segismundo (Tony Ramos, em atuação esplendorosa). Estranhando que o estrangeiro fale português, Segismundo sugere propina, mas o polonês não tem nada a oferecer além de suas memórias. O agente propõe um trato: se as memórias do pretenso agricultor o comoverem às lágrimas em dez minutos, ele carimba seu salvo-conduto. 


Klausewitz tinha desistido de ser ator na Europa devastada pela guerra e via no Brasil e na língua portuguesa a liberdade. Logo depois de aportar no lugar que lhe daria uma nova vida, é arbitrariamente detido. Sua liberdade depende de um agente que se revela ex-torturador.


Um aspecto da liberdade é este, ligado ao direito de ir e vir. Assim, o cárcere é o lugar da não-liberdade. Mas a liberdade apresenta outras facetas.


Segismundo e Klausewitz alternam monólogos em que reavivam suas memórias. Ambos concluem que não fizeram uso do livre-arbítrio em suas vidas. Segismundo sempre seguiu ordens, nunca se deu o direito de escolher por conta própria compadecer-se dos outros. Klausewitz sempre esteve presente em todas as desgraças da guerra, mas nunca fez nada: esteve presente quando seu ídolo morreu, quando sua esposa morreu, quando encontraram o corpo de seu pai, quando sua vida desmoronou com os bombardeios. A segunda faceta da liberdade é o livre-arbítrio: a liberdade de escolha.


Durante a interação, Segismundo deixa claro que a ficção não faz parte de sua vida. Nunca foi ao teatro, não reconhece Drummond como escritor, não se fala de cinema. Klausewitz, no entanto, mistura ficção e realidade. Porque na ficção ele tem a liberdade, tem uma fuga da realidade. A terceira faceta da liberdade é a ficção, o universo semelhante à realidade, que se confunde com ela, mas não é real. 


Por fim, temos a liberdade sendo discutida na Literatura. A parte de sua fala que comove o ex-torturador é um trecho de uma peça teatral, em que o personagem se questiona como pode ter mais instinto que uma ave, no entanto menos liberdade que ela; mais alma que uma fera, no entanto menos liberdade; mais escolha que um peixe, no entanto menos liberdade; mais vida que um riacho, no entanto, menos liberdade.






Ficha técnica:


Tempos de Paz
Brasil, 2009
Drama
Direção:
Daniel Filho
Roteiro:
Bosco Brasil
Elenco:
Tony Ramos, Dan Stulbach, Daniel Filho, Louise Cardoso, Ailton Graça