“Sabe o que existe na base daquilo que agrada a todos? A mediocridade.”
Morte em Veneza
O cinema e a literatura constituem artefatos culturais tributários de parâmetros narrativos, estratégias de composição e técnicas diferenciadas. Este truismo deve nos alertar para o fato de que suas particularidades compõe o critério central para o esforço de compreensão e para a própria apreciação de cada um. Por outro lado, diversos elementos se apresentam como comuns a ambas as construções estéticas: o personagem, o narrador e a própria narrativa, entre outros. Pensar a relação entre o cinema e a literatura nos remete ainda à compreensão das singularidades deste processo de intertextualidade. Um romance, antes de tomar forma como imagem cinematográfica, é convertido em um roteiro. Da qualidade deste depende muito o sucesso da leitura que o filme faz da obra literária. Não importa necessariamente a “fidelidade” do filme à narrativa escolhida, mas a capacidade da leitura criativa que é feita, a partir dos critérios da "sétima arte." Foi esta a intenção do diretor italiano Luchino Visconti ao realizar a leitura da obra Morte em Veneza, de Thomas Mann: uma interpretação cinematográfica de uma elaboração literária.
O filme Morte em Veneza se concentra em adaptar e não em reproduzir a novela de Thomas Mann. A primeira parte do romance, focada na crise existencial de Gustave, está ausente no filme. Visconti opta por se focar na parte final da obra, justamente a mais complexa e profunda. O personagem central é o compositor Gustave Aschenbach, que viaja para Veneza buscando descanso em meio a uma crise existencial após a morte de sua filha e tomado pelo desencanto quanto à sua obra. Na narrativa de Mann o personagem central é um escritor, mas Visconti opta por convertê-lo em um músico. É notável a presença da música como elemento contextualizador da narrativa e mesmo como uma espécie de personagem, seja na figura dos músicos ou como complemento da ambientação. Cabe notar que o grande homenageado é o compositor Gustav Mahler, que morre em Viena em 1911, um ano antes da publicação do romance por Mann, um notório admirador do músico.
Ao chegar a Veneza, Gustave adoece e, pela primeira vez, enfrenta a reflexão sobre a finitude da vida e sobre o próprio esgotamento de sua capacidade criativa. A cena da ampulheta, na qual o personagem sugere que nos damos conta que a areia desce apenas no final incorpora uma alegoria sobre a existência: somente quando nos restam poucos anos de existência nos atentamos realmente para o fato de que ela se findará. Dai o tema da dinâmica entre a juventude e a velhice, balizado pela morte, perpassar por diversos momentos da película. Aqui não se trata apenas de uma reflexão sobre a inexorável transitoriedade da existência biológica, mas sobre a dissolução da capacidade criativa do sujeito e, no plano histórico, de uma época. Gustave é o arquétipo de um ideal de Europa e de cultura que se dilui: ressoam aqui as fortes imagens sobre o declínio da civilização europeia, tão em voga entre aos intelectuais, sobretudo os conservadores, na transição do século XIX para o XX.
Após se recuperar do mal inicial, Gustave desce até o salão do hotel onde um conserto é realizado. Ao som de violinos e pianos ele tem seu primeiro contato com Tadzio, isto é, com a beleza em sua forma idealizada. Seu olhar, então, não consegue se prender em mais nada. A câmera de Visconti passeia pelo salão de festas captando os detalhes que o envolvem, mas o olhar de Gustave se fixa apenas no belo jovem. A imagem o hipnotiza. A cena é ampla, diversos grupos se espalham pelo salão e a música se esparrama entre todos, porém o passeio desatento da câmera acaba por voltar sempre a Gustave. Ao final, quando todos saem, Tadzio olha para trás, deixando claro o fato de saber que Gustave o observava. A beleza nunca é inocente, muito menos pura. Mas o que é a beleza? Uma construção do trabalho do artista, das vivências, ou algo que preexistente ao esforço de criação e à própria experiência, isto é, da genialidade? A beleza é uma percepção dos sentidos, ou um ato espiritual? O contato com Tadzio motiva em Gustave diversas reflexões sobre o belo e sua construção, sobre o papel do artista, da arte e de seus fundamentos. Tais metáforas não podem ser ignoradas para apreendermos o filme.
O fascínio de Gustave por Tadzio só se amplia a cada reencontro dos olhares. Isso é causa de prazer e desespero, pois o compositor é um grande moralista, alguém que vê na experiência física a impureza deturpadora da criação. Nada pode tingir sua compreensão do belo, pois imagina que este é inapreensível e maculado quando filtrado pelos sentidos.
A beleza do rapaz hipnotiza e sufoca o compositor. Esse fascínio pelo belo, a busca do sublime e do perfeito se contrapõe à doença que ataca a cidade, à decadência e à miséria que se alastra e que se opõe aos ideais estéticos da beleza.
Ao perceber a inevitabilidade da morte, Gustave se esvai como a cidade tomada pela peste que a envolve. A cena final na praia deserta, frente à imagem de seu objeto de veneração, nos conduz à última etapa do amor platônico de Gustave: Tadzio emerge como um dos deuses gregos que apontam para o horizonte.
É na experiência gélida da praia quase deserta e tomada por uma morbidez solitária que o compositor absorve a última percepção do belo sublime na figura de um Tadzio emoldurado pelo céu, o mar e a areia. A morte que envolve Gustave e o leva é a mesma que, por fim, o liberta.
É na experiência gélida da praia quase deserta e tomada por uma morbidez solitária que o compositor absorve a última percepção do belo sublime na figura de um Tadzio emoldurado pelo céu, o mar e a areia. A morte que envolve Gustave e o leva é a mesma que, por fim, o liberta.
Robson dos Santos
FICHA TÉCNICA
Titulo original: (Morte a Venezia)
Lançamento: 1971 (Itália/França)
Direção: Luchino Visconti
Atores: Dirk Bogarde, Mark Burns , Marisa Berenson , Carole André , Björn Andrésen
Duração: 130 min
Gênero: Drama
Temática Cine deLírio: Cinema e Literatura