quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Morte, amor e beleza no cinema


“Sabe o que existe na base daquilo que agrada a todos? A mediocridade.”
Morte em Veneza

O cinema e a literatura constituem artefatos culturais tributários de parâmetros narrativos, estratégias de composição e técnicas diferenciadas. Este truismo deve nos alertar para o fato de que suas particularidades compõe o critério central para o esforço de compreensão e para a própria apreciação de cada um. Por outro lado, diversos elementos se apresentam como comuns a ambas as construções estéticas: o personagem, o narrador e a própria narrativa, entre outros. Pensar a relação entre o cinema e a literatura nos remete ainda à compreensão das singularidades deste processo de intertextualidade. Um romance, antes de tomar forma como imagem cinematográfica, é convertido em um roteiro. Da qualidade deste depende muito o sucesso da leitura que o filme faz da obra literária. Não importa necessariamente a “fidelidade” do filme à narrativa escolhida, mas a capacidade da leitura criativa que é feita, a partir dos critérios da "sétima arte." Foi esta a intenção do diretor italiano Luchino Visconti ao realizar a leitura da obra Morte em Veneza, de Thomas Mann: uma interpretação cinematográfica de uma elaboração literária.
O filme Morte em Veneza se concentra em adaptar e não em reproduzir a novela de Thomas Mann. A primeira parte do romance, focada na crise existencial de Gustave, está ausente no filme. Visconti opta por se focar na parte final da obra, justamente a mais complexa e profunda. O personagem central é o compositor Gustave Aschenbach, que viaja para Veneza buscando descanso em meio a uma crise existencial após a morte de sua filha e tomado pelo desencanto quanto à sua obra. Na narrativa de Mann o personagem central é um escritor, mas Visconti opta por convertê-lo em um músico. É notável a presença da música como elemento contextualizador da narrativa e mesmo como uma espécie de personagem, seja na figura dos músicos ou como complemento da ambientação. Cabe notar que o grande homenageado é o compositor Gustav Mahler, que morre em Viena em 1911, um ano antes da publicação do romance por Mann, um notório admirador do músico. 
Ao chegar a Veneza, Gustave adoece e, pela primeira vez, enfrenta a reflexão sobre a finitude da vida e sobre o próprio esgotamento de sua capacidade criativa. A cena da ampulheta, na qual o personagem sugere que nos damos conta que a areia desce apenas no final incorpora uma alegoria sobre a existência: somente quando nos restam poucos anos de existência nos atentamos realmente para o fato de que ela se findará. Dai o tema da dinâmica entre a juventude e a velhice, balizado pela morte, perpassar  por diversos momentos da película. Aqui não se trata apenas de uma reflexão sobre a inexorável transitoriedade da existência biológica, mas sobre a dissolução da capacidade criativa do sujeito  e, no plano histórico, de uma época. Gustave é o arquétipo de um ideal de Europa e de cultura que se dilui: ressoam aqui as fortes imagens sobre o declínio da civilização europeia, tão em voga entre aos intelectuais, sobretudo os conservadores, na transição do século XIX para o XX.
Após se recuperar do mal inicial, Gustave desce até o salão do hotel onde um conserto é realizado. Ao som de violinos e pianos ele tem seu primeiro contato com Tadzio, isto é, com a beleza em sua forma idealizada. Seu olhar, então, não consegue se prender em mais nada. A câmera de Visconti passeia pelo salão de festas captando os detalhes que o envolvem, mas o olhar de Gustave se fixa apenas no belo jovem. A imagem o hipnotiza. A cena é ampla, diversos grupos se espalham pelo salão e a música se esparrama entre todos, porém o passeio desatento da câmera acaba por voltar sempre a Gustave. Ao final, quando todos saem, Tadzio olha para trás, deixando claro o fato de saber que Gustave o observava. A beleza nunca é inocente, muito menos pura. Mas o que é a beleza? Uma construção do trabalho do artista, das vivências, ou algo que preexistente ao esforço de criação e à própria experiência, isto é, da genialidade? A beleza é uma percepção dos sentidos, ou um ato espiritual? O contato com Tadzio motiva em Gustave diversas reflexões sobre o belo e sua construção, sobre o papel do artista, da arte e de seus fundamentos. Tais metáforas não podem ser ignoradas para apreendermos o filme.
O fascínio de Gustave por Tadzio só se amplia a cada reencontro dos olhares. Isso é causa de  prazer e desespero, pois o compositor é um grande moralista, alguém que vê na experiência física a impureza  deturpadora da criação. Nada pode tingir sua compreensão do belo, pois imagina que este é inapreensível e maculado quando filtrado pelos sentidos.
A beleza do rapaz hipnotiza e sufoca o compositor. Esse fascínio pelo belo, a busca do sublime e do perfeito se contrapõe à doença que ataca a cidade, à decadência e à miséria que se alastra e que se opõe aos ideais estéticos da beleza.
Ao perceber a inevitabilidade da morte, Gustave se esvai como a cidade tomada pela peste que a envolve. A cena final na praia deserta, frente à imagem de seu objeto de veneração, nos conduz à última etapa do amor platônico de Gustave: Tadzio emerge como um dos deuses gregos que apontam para o horizonte.
É na experiência gélida da praia quase deserta e tomada por uma morbidez solitária que o compositor absorve a última percepção do belo sublime na figura de um Tadzio emoldurado pelo céu, o mar e a areia. A morte que envolve Gustave e o leva é a mesma que, por fim, o liberta.
Robson dos Santos

FICHA TÉCNICA

Titulo original: (Morte a Venezia)
Lançamento: 1971 (Itália/França)
Direção: Luchino Visconti
Atores: Dirk Bogarde, Mark Burns , Marisa Berenson , Carole André , Björn Andrésen
Duração: 130 min
Gênero: Drama
Temática Cine deLírio: Cinema e Literatura

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A culpa é do Fidel



Dirigida por Julie Gavras (filha do famoso cineasta político grego Costa Gavras), a película possui elementos líricos e poéticos que nos remetem a uma criticidade política e social um tanto quanto que bem humorada; sem - é claro - nos desviar de discussões complexas sobre autoritarismo, solidariedade, e porque não, revolução.

O longa nos faz pensar a revolução dentro de uma perspectiva peculiar: micro-famíliar, circunscrita em uma estrutura macro-estrutural que aparece como elemento basilar da transformação social. O filme se passa na França entre os anos de 1970 e 1971, em um contexto histórico de efervescência política e cultural diferenciada  na Europa, na América e no mundo como um todo. Em Paris, destacam-se as mudanças sociais e políticas decorrentes principalmente das manifestações de maio de 1968. Na Espanha, a ditadura de Franco e no Chile o processo de abertura política e as eleições em que Salvador Allende Pleiteava o cargo de presidente.

Anna (Nina Kervel-Bey), que tem apenas nove anos, suas referências e seu pequeno mundo burguês diluir-se aos poucos após o engajamento dos seus pais na política de esquerda. Seu pai, Fernando (Stefano Accorsi), é um advogado bem-sucedido de origem espanhola, casado com Marie (Julie Depardieu, filha de Gerard Depardieu) que trabalha para revista Marie-Claire. O casal possui outro filho, François (Benjamin Feuillet). Aflitos e angustiados com o sentimento de inércia aflorados com a morte do cunhado comunista e antifascista pelo franquismo (regime político vigente na Espanha entre 1939 e 1976 na ditadura do general Francisco Franco). Os pais de Anna decidem romper com status quo  burguês

Fernando e Marie tornam-se militantes em defesa de Salvador Allende no Chile e ativistas em diversas outras causas progressistas. Marie abandona seu emprego na famosa revista feminina burguesa para concentrar seus esforços na publicação de um livro sobre a luta pelo direito ao aborto. A família muda da enorme casa com jardins e quartos individuais para cada filho para um aconchegante, porém pequeno apartamento. Todas essas mudanças são acompanhadas pela pequena Anna de forma apreensiva e contra sua vontade.

Sua babá, que tinha fugido de Cuba, foi substituída por uma série de babás de outros lugares como a Grécia e a China, todas refugiadas políticas acolhidas pela família. A primeira sempre alertava a pequena múmia (nome dado pelos amigos do seu pai àqueles que eram contra ao governo de Salvador Allende. O apelido também era a forma carinhosa como eles chamavam a pequena Anna) dos perigos eminentes dos barbudos comunistas.

Influenciada por outros padrões, Anna precisava entender as transformações e os antagonismos de dois mundos diferentes, (católico, capitalista e ateu, socialista) em que o social, o político e o cultural são encarados de diferentes aspectos. Possuidor de uma sutiliza ímpar, a película transborda sensações e nos impulsiona a uma reflexão sobre diversos elementos sócio-culturais.

Por Paulo Alberto

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Nada vem do nada: um passeio por good copy bad copy

 
Por Ninno Amorim

Os responsáveis pelo Cineclube DeLírio reuniram-se para discutir os filmes que entrariam na temática “Revolução”. Numa perspectiva mais sociológica clássica, filmes como Good Copy Bad Copy não seriam exibidos dentro dessa temática. O conceito de revolução convencional fala de transformações nas estruturas de poder de uma sociedade. O que aconteceu então? 

Antes de responder, quero lembrar que durante muito tempo “revolução” designava os movimentos bruscos dos astros, que passeavam pela galáxia indiscriminadamente provocando desespero nos primeiros pensadores que tentavam entender o seu funcionamento. Foi Hannah Arendt quem nos orientou sobre a mudança no conceito de revolução ocorrida após a queda da bastilha em 1789. De uma explicação da mudança dos astros para uma mudança brusca nas estruturas de poder de uma sociedade, uma revolta, uma reorganização da vida orientada por ideais iluministas (utópicos?).
 
Um olhar mais atento perceberá a revolução apresentada no documentário de Andreas Johnsen, Ralf Christensen e Henrik Moltke. Uma revolução que mexe sim com as estruturas de poder. Do poder de criar e veicular a criação livre dos autoritarismos presentes nas leis de direitos autorais. “Mas isso não atinge um número significativo de pessoas para ser chamado de revolução”, diria um cientista social clássico do início do séc. XX. Como contra-argumento ao virtual cientista citado, arranquei um episódio vivido em meados dos anos 1990 para pensar a revolução de que fala GCBC.
 
Em 1995, um amigo estreante na carreira de pequeno empresário adquiriu um aparelho de telefone celular. Era um troço enorme para os padrões atuais, pesado, com antena e tudo. Algumas pessoas tinham vergonha de atender o recém-chegado “celular”, porque poderia soar esnobe usar algo tão avançado, tão caro, tão tão; diante de uma plateia de miseráveis e famintos de tudo. Recordo que antes mesmo de chegar o esperado ano 2000, o telefone celular já fazia parte da vida de muita gente. Que reflexão podemos fazer a partir dessa historinha? Naquela época "todo mundo" achava que demoraria uns 30 anos para que os celulares se tornassem populares. 

O que "todo mundo" pensa hoje sobre as possibilidades de construção colaborativa do conhecimento, da arte, das tecnologias? No decorrer do documentário, muitas pessoas apresentam seus pontos de vista sobre criatividade, propriedade intelectual, compartilhamento pela internet etc. Aparecem tanto os ciberativistas quanto os defensores da indústria cultural que alega ter prejuízos com a nova indústria cultural. Termos como sampler, download, upload, bit torrent, creative commons ('criei tive como', em português do Brasil!), copyleft (em oposição direta ao copyright), entre outros, são recorrentes em todo o documentário. Tais termos indicam que há algo acontecendo de novo no mundo da criação artística. Brotam reclamações, processos, cancelamento de sítios eletrônicos, fechamento de provedores de internet, por todos os lados. É certo que isso está incomodando. Chamam de “pirataria”. Um dos sujeitos que aparece no filme, representante de Hollywood, chega a definir o conceito: segundo ele, “pirataria é a apropriação inautorizada e sem compensação de propriedade intelectual”. O DJ Girl Talk defende-se com uma pergunta provocativa: “porque perseguir alguém que claramente só está tentando fazer música?” O fio condutor do filme é uma discussão sobre a construção colaborativa do conhecimento, o que certamente incomoda os interesses de quem ganha com a privatização dos saberes.

O que entendemos por criatividade? A constituição dos EUA fala em proteger os direitos dos criadores, mas o que isso significa? Até que ponto a justiça, com sua emblemática imagem de olhos vendados, alcança os seus propósitos de “proteger os criadores”? Os argumentos de alguns entrevistados caminham no esclarecimento dessas questões. Dr. Lawrence Ferrara, por exemplo, sobre as noções de propriedade intelectual e direitos autorais, pergunta: “quem é o dono? E do quê? Qual a função do direito autoral?” Representantes da indústria alegam que “as coisas ficaram fora do controle”. Controle de quê (quem)?

Créditos:
Good Copy Bad Copy – documentário, 2007
Um filme de Andreas Johnsen, Ralf Christensen e Henrik Moltke
Disponível para download em:
59 minutos, áudio em vários idiomas, com legendas em português e inglês.
Saca aí quem aparece no filme:
DJ Girl Talk
Dr Lawrence Ferrara, Diretor do Departamento de Música da NYU
Paul V Licalsi, Advogado de Sonnenschein
Jane Peterer, Bridgeport Music
Dr Siva Vaidhyanathan, NYU
Danger Mouse, Produtor
Dan Glickman, Presidente da MPAA
Anakata, The Pirate Bay
Tiamo, The Pirate Bay
Rick Falkvinge, The Pirate Party
Lawrence Lessig, Creative Commons
Ronaldo Lemos, Professor de Direito FGV Brazil
Charles Igwe, Produtor cinematográfico - Lagos Nigeria
Mayo Ayilaran, Sociedade de Direitos Autorais da Nigéria
Olivier Chastan, VP Records
John Kennedy, Presidente da IFPI
Shira Perlmutter, Diretora de Política Global da IFPI
Peter Jenner, Sincere Management
John Buckman, Gravadora Magnatune
Beto Metralha, Produtor em Belém do Pará
Dj Dinho, Aparelhagem Tupinambá Belém do Pará

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ventos da Liberdade




No filme que rendeu ao diretor britânico, Ken Loach, a Palma de Ouro em 2006; a revolução aparece no que vou chamar de sua acepção mais convencional. Ou seja, como o processo pelo qual o povo se mobiliza e se organiza para transformar uma determinada situação.

A história da formação do IRA (Exército Republicano Irlandês) é contada por meio da biografia de Demian: um estudante de medicina que, ao se deparar com uma série de acontecimentos atrozes, decide abandonar uma promissora careira para se dedicar à libertação do seu país da ocupação britânica.

Ken Loach se concentra na crueldade e nos absurdos da ocupação britânica para explicar o surgimento do Exército Republicano Irlandês. Tal escolha resulta em uma “leitura” do processo que privilegia os seus aspectos políticos e sociais. Com isto, as questões religiosas que (também) estão por trás da história do IRA ficam em um segundo plano no filme.

O ponto forte de “Ventos da Liberdade” é a profundidade com que o processo revolucionário é abordado. A película nos mostra a extrema complexidade que envolve um movimento de transformação social. Não só no que diz respeito às questões que estão diretamente relacionadas ao enfrentamento da situação em si, mas aos próprios dilemas que surgem dentro do movimento de contestação ao longo da luta.

Um filme muito denso e eletrizante que vale a pena ser visto com atenção e discutido com muita calma.

Por Guilherme Veppo

Informações Técnicas
Título no Brasil: Ventos da Liberdade
Título Original: The Wind That Shakes the Barley
País de Origem: Alemanha / Itália / Espanha / França / Irlanda / Inglaterra
Gênero: Drama
Classificação etária: 12 anos
Tempo de Duração: 127 minutos
Ano de Lançamento: 2006
Estréia no Brasil: 13/04/2007
Site Oficial: http://www.thewindthatshakesthebarl ey.co.uk
Estúdio/Distrib.: Califórnia
Direção: Ken Loach