segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ônibus 174 e a tragédia brasileira



Jardim Botânico, Rio de Janeiro, início da tarde. Um ônibus parado compõe o cenário de uma trágica história. Dentro do ônibus 174 – Central, via Humaitá, pessoas são transformadas em reféns de um sistema desigual de distribuição de renda, da terra, da informação, de oportunidades... Sandro atua no papel do bandido, malvado, drogado, assassino e todos esses estereótipos atribuídos aos sujeitos que a nossa sociedade não soube cuidar. Os demais reféns são os passageiros de uma viagem rotineira, mas que naquele dia se tornaria difícil de esquecer.

Pode até parecer um roteiro de filme de ação hollywoodiano, mas trata-se de um documentário de José Padilha sobre um episódio que ficou muito conhecido na época, devido à grande exposição do evento pela televisão brasileira.

As primeiras imagens aéreas do documentário apresentam um aglomerado de favelas que compõem grande parte da cidade do Rio de Janeiro. Uma antiga pergunta vem à tona: para onde foram os ex-escravos após a farsa da abolição? Há quem diga que no sistema capitalista não há excluídos, todos são incluídos de alguma forma, seja como mendigo, camelô ou bandido. Sérgio Bianchi fala do grande negócio que são as construções de presídios no país, esses navios negreiros contemporâneos.

Padilha faz um passeio pelo Rio e encontra outras pessoas conhecedoras da trágica história de Sandro Rosa do Nascimento, que poderia ser Sérgio, Ricardo ou Ninguém, tanto faz, pois são todos filhos da desgraça, vítimas e às vezes algozes dessa narrativa violenta.

Os chamados Meninos e Meninas de Rua dão seus depoimentos para o documentarista e nos deixam a par de uma outra história, diferente daquela que aprendemos a reproduzir. “Querem ser vistos”, diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares, sobre a invisibilidade promovida pela sociedade que os cerca. Estão “famintos de existência social”, completa o antropólogo.

O documentário apresenta o despreparo da polícia mais especializada do Estado do Rio de Janeiro, o discurso de um traficante analisando friamente toda a situação, os depoimentos das pessoas que estavam no ônibus, a fala de especialistas, de parentes etc.

Nesta última temática do cineclube deLírio, Discriminação, temos muito o que refletir sobre os valores que aprendemos e reproduzimos. Neste momento o Rio sofre ataques violentos nas ruas, ainda não vi na TV ou nos jornais uma reflexão próxima a essa que Padilha propõe em Ônibus 174.

Nossa tragédia urbana é fruto de um conjunto de fatores históricos, de escolhas políticas, de concepções de economia que numa espécie de caldeirão perverso transforma-se nesse caldo azedo que somos obrigados a tomar. O pior, tem gente que se acostumou com o azedume do caldo e nem pensa em mudar os ingredientes.

Ficha Técnica
Título original: Ônibus 174
Gênero: Documentário
Duração: 128 min.
Lançamento (Brasil): 2002
Distribuição: Riofilme, ThinkFilm Inc e Zazen Produções
Direção: José Padilha
Co-direção: Felipe Lacerda
Produção: José Padilha e Marcos Prado
Co-Produção: Rodrigo Pimentel
Música: João Nabuco e Sasha Ambak
Fotografia: Cesar Moraes e Marcelo Guru
Pesquisa: João Alves e Fernanda Cardoso

Elenco
Yvonne Bezerra de Mello
Rodrigo Pimentel
Sandro do Nascimento
Luiz Eduardo Soares

Premiações
- Prêmio de Melhor Documentário, Melhor Diretor de Documentário (José Padilha), escolhido pelos leitores do Adoro Cinema Brasileiro, 2003.

- Melhor Documentário do júri do Festival Internacional de Cinema de Miami, 2003.

- Melhor Filme - Documentário, no Festival do Rio BR 2002.

- Prêmio Adoro Cinema 2002 de Melhor Documentário.

- Ônibus 174 venceu o troféu Bandeira Paulista na categoria documentário, na 26ª Mostra BR de Cinema - Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, 2002.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Precious

A última temática do ano é DISCRIMINAÇÃO. Dependendo do ângulo de que se aborda o tema, é possível fazer diferentes escolhas. Seria possível, por exemplo, escolher um filme em que negros são maltratados por causa da cor de sua pele. Assim, faria-se o recorte de um filme em que a questão da discriminação racial é explorada. Se o filme escolhido tratasse da falta de oportunidade oferecida aos que já possuem um baixo poder aquisitivo, então estaria-se privilegiando a discriminação social. Se, por outro lado, o filme escolhido apresentasse analfabetos que são tratados como menos humanos por não saberem ler e escrever na sociedade que toma essa habilidade como base da formação do cidadão, a questão da discriminação social se apresentaria sob outro aspecto. Discriminação racial e social são temas bem explorados no cinema, mas não são os únicos ângulos possíveis de se observar a discriminação. Seria possível detectar discriminação num filme que mostra obesos solitários e deprimidos, ou num filme que mostra uma mãe que rejeita seu filho com Síndrome de Down. 

Pois Precious é um filme que concentra (quase) todas as formas de discriminação possíveis. Claireece Precious Jones (Gabourey Sidibe) é a personagem principal: negra, obesa, pobre, analfabeta, mãe pela segunda vez aos 16 anos. Mesmo quando Precious não concentra em sua pessoa o alvo da discriminação, temas como por exemplo a homossexualidade estão presentes no filme.

O diretor, Lee Daniels, também participou da elaboração de A última ceia (Monster's Ball, 2001). Neste filme, Leticia (Halle Berry) é a atriz que incorpora a vítima da discriminação racial exercida pelo agente penitenciário que executou (sim, existe pena de morte nos EUA) seu marido. Neste filme, o espectador é confrontado com um homem branco que se apaixona por uma mulher negra e luta contra o seu racismo arraigado. Em Precious, não há dualidade (desejo e repulsa, amor e ódio, natural e tradicional): Precious é um ímã que atrai qualidades que são discriminadas na sociedade americana atual. Precious não é sexy como Leticia, mas em seus devaneios, se vê como uma superstar de Hollywood. Precious não é desejada como Leticia, mas quando a mãe não está, é estuprada pelo pai. Precious não demonstra suas emoções como Leticia, mas a partir do momento em que domina a técnica da escrita, usa o seu diário para exteriorizar sentimentos e organizar emoções. 

O maior contraponto a Precious é sua mãe. É Mary (Mo'Nique, vencedora do Globo de Ouro) quem a humilha e maltrata diariamente. É a mãe que disputa com Precious o mesmo homem, é ela que recebe o dinheiro da pensão pela primeira filha de Precious, e é ela que não admite uma criança com Síndrome de Down em casa. O egocentrismo da mãe sufoca Precious. Nesse sentido, a técnica de filmagem faz com que as cenas no espaço compartilhado pelas duas sejam claustrofóbicas.

Preciosa - Uma História de Esperança

Precious: Based on the Book "Push" by Sapphire
EUA , 2009 - 110 minutos
Drama
Direção: Lee Daniels
Roteiro: Damien Paul
Elenco: Gabourey "Gabbie" Sidibe, Mo'Nique, Paula Patton, Lenny Kravitz, Mariah Carey, Sherri Shepherd

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O moderno em tempos de cólera

Tragicômico, sensível e realista, esses são alguns adjetivos que podem definir a película. Todavia, Tempos Modernos vai além: filmado em 1936 - sete anos após a crise da Bolsa de New York- é dirigido por Charles Chaplin, que interpreta um operário que tenta sobreviver no mundo moderno e industrializado de uma grande  cidade norteamericana.

Tempos Modernos possibilita uma reflexão  histórica-social  sobrecinema a partir de duas ópticas que se relacionam. A primeira é a possibidade prática do fazer cinema (inventada pelos irmãos Lumière), como reflexo de um desenvolvimento que se fez possível a partir de avanços e  aperfeiçoamentos científico-tecnológicos das câmeras fotográficas, dando origem à filmadora. A segunda é a utilização desses instrumentos para a consolidação da sétima arte. Ao contrário da maneira mecanicista que originalmente foi empregada (o trabalho era ligar a câmera e filmar), o cinema aparece como uma manifestação artística construindo formas, estilos e sentidos, subjetivos ou coletivos.

O cinema foi posteriormente empregado até mesmo para consolidação de ideologias (como aconteceu no período do Terceiro Reich na Alemanha nazista) e serviu para materializar interesses econômicos a serviço das grandes indústrias da moda e do tabagismo (entre outros, principalmente no cinema Holiwoodiano). Naquela época, era novidade pensar uma produção, a edificação de histórias com ideias criativas, o cinema literalmente como arte, possuidor de formas que apresentam seus intentos a partir da relação de ideias de um conjunto de artistas (diretor, roterista, sonoplasta, maquiador, diretor de fotografia etc.). Nesse sentido, Chaplin foi um mestre: dirigia, atuava, produzia e fazia a trilha sonora da maioria de seus filmes

Em Tempos Modernos, seu último filme mudo, Chaplin apresenta de forma cômica uma conjuntura histórica de exploração da classe trabalhadora pela alta burguesia industrial, devido principalmente à consolidação do modo de produção capitalista.

Como a maioria de seus filmes, Tempos Modernos é narrado em forma de sátira social. Na percepção marxista, o filme destaca como a classe operária (proletária), é explorada quase em regime escravocrata (mais-valia e alienação), pelos burgueses detentores dos meios de produção. Chaplin apresenta a desumanização do trabalho, que cada vez mais tornava-se mecanicista. Mostra a injustiça como válvula propulsora das revoltas e manifestações por mudanças na estrutura. Tempos Modernos é uma verdadeira obra prima da cinematografia mundial.
Por Paulo Alberto

·  Título original:Modern Times
·  gênero:Comédia
·  duração:01 hs 27 min
·  ano de lançamento:1936
·  site oficial:
·  estúdio:United Artists / Charles Chaplin Productions
·  distribuidora:United Artists
·  direçãoCharles Chaplin
·  roteiro:Charles Chaplin
·  produção:Charles Chaplin
·  música:Charles Chaplin
·  fotografia:Ira H. Morgan e Roland Totheroh

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ponto de Mutação


Bernt Capra dirige este filme que foi produzido com base no livro escrito pelo seu irmão, o físico austríaco Fritjof Capra. Embora os nomes do livro e do filme originais não sejam os mesmos, no Brasil, ambos foram traduzidos como “O ponto de mutação”. 

A montagem do filme é relativamente simples se comparada a filmes com uma linguagem mais hollywoodiana. O enredo é basicamente: um poeta, uma cientista doutora em física e um político norte-americano, em um dia de muita discussão e passeio pelo belo Mont Saint Michel. A simplicidade fica por aí, pois o filme  é composto de diálogos muito densos do começo ao fim.

Já na primeira cena em que o trio trabalha junto, o político profissional Jack Edwards (Sam Waterson) e o seu amigo, o poeta Thomas Harriman (John Heard) ainda estão conversando sobre os motivos que teriam levado o político a ser derrotado nas eleições para a presidência dos EUA, quando, influenciados pelo ambiente, iniciam uma conversa sobre o impacto que a invenção do relógio teria tido sobre a história da humanidade. É esse o momento em que o personagem de Liv Ullmann, uma doutora em física decepcionada com a dissonância existente entre os desdobramentos práticos da sua pesquisa e a sua motivação inicial, é chamado a entrar em cena.

O político não consegue entender por que pessoas inteligentes como a doutora são desiludidas com a política nos EUA e ela, utilizando-se do relógio medieval, começa a explicar suas motivações. A tese da doutora em física quântica é que a sociedade atual sofre de uma crise de percepção e isso teria ocorrido porque o pensamento não acompanhou as transformações que ocorreram no planeta.

Daí em diante, as discussões se adensam cada vez mais e o cenário medieval do Mont Saint Michel, em algumas passagens parece se tornar mais um dos personagens do filme. As construções medievais utilizadas como cenário têm um efeito quase que dialógico no desenrolar do filme, pois elas servem de mote para boa parte das discussões; além de evidenciar as distâncias existentes entre o mundo medieval e a modernidade.
A visão de mundo cartesiana, com a sua perspectiva mecanicista e fragmentária, segundo a doutora, não daria mais conta da modernidade e teria de dar lugar a uma visão holística da realidade. Sendo assim, política, ecologia e ciência não poderiam ser dissociados, nem analisadas isoladamente em detrimento do todo. Uma série de problemas contemporâneos como a fome no hemisfério no sul, o endividamento das antigas colônias das metrópoles mercantilistas etc., são trabalhados pela doutora de modo a evidenciar as relações destes problemas com uma série de outros. Deixando clara a necessidade de uma nova percepção da vida.

Mas o que é a vida? A doutora, através da visão da física quântica, afirma que a vida é a propensão para a auto-organização. Nesse momento, o poeta que ocupa um papel secundário nas conversas ao longo de todo o filme, se torna o protagonista da cena e demonstra como a visão da vida proposta pela física contemporânea, por mais progressista que possa parecer, também é mais um conceito, uma mera fórmula, uma simplificação da extrema complexidade que é a vida.

Por Guilherme Veppo

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Das coisas que podem germinar



Entre os escombros de uma velha mina de carvão, um forasteiro observa atônito o movimento de trabalhadores errando madrugada adentro. Assim começa Germinal, um filme de Claude Berri, inspirado em obra homônima de Émile Zola.

O livro de Zola foi publicado em 1885, pouco depois da criação da chamada Primeira Internacional, um movimento que pretendia associar todos os trabalhadores do mundo para unirem-se contra a exploração do Capital. O próprio Zola trabalhou como mineiro antes de escrever o livro. O filme é de 1993, período em que uma nova crise do capitalismo se agravava, explodindo greves e rebeliões por todos os lados. São duas horas e meia de filme...

A história acontece em meados do século XIX. O cenário são as minas de carvão e toda a sua produção de riquezas e de horrores. Condições miseráveis de vida que conduzem mulheres, homens, jovens e crianças ao trabalho nas minas. O filme apresenta as contradições do modo de produção capitalista, uma das características daquilo que chamamos de modernidade. Crise com o aumento da produção, trabalho precarizado, desemprego, lutas sociais e hipocrisia burguesa são alguns dos ingredientes do filme.

A cena em que uma mãe vai com seus dois filhos em busca de ajuda numa mansão burguesa caracteriza as relações sociais entre patrões e trabalhadores. Enquanto o luxo habita as mansões, a desgraça se abate sobre a casa dos proletários, um termo cunhado por Marx para definir aqueles que recebiam pelo seu trabalho apenas o suficiente para reproduzir a prole. Em cenas como essa germina a indignação...

O filme apela para a revolução. Há debates entre perspectivas socialistas, anarquistas, sendo estas um tanto estereotipadas no filme, e até social-democrata em alguns pontos. Entre propostas revolucionárias e reformistas, os trabalhadores resolvem aderir a uma greve que provocará consequencias fulminantes em suas vidas. Nessas cenas germina a necessidade de organização...

Apesar da infeliz condição de vida desses trabalhadores, a situação pode ficar ainda pior, comprovando a famosa tese de Schopenhauer. Algumas ideias de Marx, Proudhon, Bakunin, entre outros, estão presentes nos personagens de Étienne, Rasseneur e Souvarine: organização dos trabalhadores e importância da consciência de classe, a ação direta dos trabalhadores, as noções de coletivismo numa sociedade fundada nas relações de trabalho, luta por melhores condições de trabalho sem mudança no modo de produção etc.

O que entendemos por modernidade é fruto das transformações ocorridas na estrutura das sociedades a partir de vários elementos: substituição da explicação teológica pela científica, passagem do feudalismo ao capitalismo, aumento das cidades, alterações profundas nas relações entre os indivíduos e mundo social que os abriga etc.

Nas Ciências Sociais identificamos essas características nas obras dos nossos clássicos: a dominação burocrática em Weber, a divisão do trabalho social em Durkheim e o modo de produção capitalista em Marx. Aliadas às obras de Freud e de Nietzsche, os clássicos das Ciências Sociais discutem esse novo mundo, com o fim de entender, explicar e intervir (n)a realidade social.

Uma coisa fica clara no filme, a morte não tem preconceitos, ela é universal. Por entre as cenas dramáticas de Germinal, é possível aproveitar alguns momentos de lazer dos trabalhadores. E ainda, a esperança de que nos lugares e situações mais inusitadas pode germinar o amor.


Ficha técnica

Título original: Germinal
Gênero: Drama
Duração: 160 min
Ano de lançamento: 1993
Direção: Claude Berri
Países: França, Bélgica e Itália
Temática Cineclube Delírio: Modernidade
Elenco principal:
Miou-Miou - Maheude
Renaud - Étienne Lantier
Jean Carmet - Vincent Maheu dit Bonnemort (Boa Morte)
Judith Henry - Catherine Maheu
Jean-Roger Milo - Chaval Antoine
Gérard Depardieu - Toussaint Maheu
Laurent Terzieff - Souvarine
Jean-Pierre Bisson - Rasseneur