sexta-feira, 27 de abril de 2012

A ruptura absoluta: solidão nas grandes cidades


Por Paulo Morais 

“Não acredito que se deva dedicar a vida à morbidez do egocentrismo. Acredito que alguém deve se tornar uma pessoa como as outras”. A partir destas ruminações, o protagonista do filme Taxi Driver (1976), do diretor Martin Scorsese, oferece elementos úteis para reflexões acerca da solidão, uma condição da existência de todos os seres humanos, que se mostra particularmente dramática nos “animais da noite” que circulam pelas ruas das grandes cidades. No final do século XIX, William James escreveu que as rupturas entre os pensamentos humanos são as mais absolutas da natureza, “nem contemporaneidade, nem proximidade espacial, nem similaridade de qualidade ou conteúdo são capazes de fundir os pensamentos”. A estranheza generalizada e os pequenos mal-entendidos presentes em quase todos os diálogos triviais ou significativos que Travis Bickle (Robert De Niro) mantém ao longo do filme são exemplos desta ruptura intersubjetiva. Seja por ser mal compreendido pelos outros, seja por ser incapaz de perceber o mundo a partir de uma perspectiva diferente da sua, Travis alterna momentos de empatia com situações nas quais a linguagem usada compartilha somente a mesma gramática e foge-lhe uma semântica comum.
É por meio das sutilezas da linguagem (verbal ou não verbal) que os pensamentos de uma pessoa podem se tornar parcialmente acessíveis ao pensamento de outra pessoa, mas os diálogos e monólogos do filme mostram a condição de isolamento vivenciada pelos habitantes das grandes cidades que, a despeito de falarem o mesmo idioma, não compartilham os mesmos significados e, ao tentar romper o isolamento, se afastam cada vez mais. Nas situações corriqueiras como, por exemplo, ao comprar doces e refrigerante em um cinema pornô, e também nas relações interpessoais significativas com a prostituta mirim Iris (Jodie Foster) ou com Betsy (Cybill Shepherd), Travis e seus interlocutores são incapazes de minimizar a ruptura entre os pensamentos e promover a aproximação intersubjetiva e o diálogo autêntico capaz de  antagonizar o isolamento descrito por James.
O roteirista do filme, Paul Schrader, afirmou que a profissão de motorista taxi foi o modo encontrado para representar a solidão típica dos centros urbanos, na qual a pessoa se percebe isolada mesmo com uma enorme quantidade de outras pessoas ao seu redor. Mesmo para um animal que, nas palavras de Dostoiévski, se adapta a tudo, a densidade populacional das grandes cidades, associada à qualidade precária da maior parte das relações interpessoais dos seus habitantes, é um fator de risco para a saúde dos seres humanos. Na tentativa de adaptar-se a um meio hostil, o animal humano, dotado de autoconsciência, naturalmente narcísico e só parcialmente gregário, se vê obrigado a executar a difícil tarefa de “se tornar uma pessoa como as outras” (que é uma estratégia útil para o indivíduo reduzir as chances da sua exclusão social) ao mesmo tempo em que precisa se firmar, a todo instante da vida, como uma pessoa única e diferente de todas as outras pessoas que existe (que é a consequência natural de possuir autoconsciência).
Apesar de negar os aspectos patológicos associados à idolatria das próprias características e acreditar que o indivíduo deva se adequar às demais pessoas, Travis, um ex-fuzileiro-naval exposto à incomunicabilidade e solidão da metrópole cosmopolita, se torna um motorista de taxi (em qualquer lugar e a qualquer hora) que deseja somente “trabalhar por muitas horas” para preencher suas noites de insônia. No entanto, as características de tal profissão contribuem para que Travis se torne o expectador egocêntrico de um mundo perverso e corrupto. Após “abater-se pelas coisas”, Travis deixa a condição de mero expectador e decide mostrar aos sacanas nojentos e aos animais da noite que ele é um homem que não aguenta mais, que é um indivíduo capaz de se opor à decadência e ao lixo da grande cidade. E, na solidão daquilo que parece ser os seus últimos pensamentos, Travis se torna o herói dos jornais, recebe uma carta de gratidão dos pais de Iris, revê os amigos, tem um breve, mas autêntico, diálogo com Betsy e se vai, solitariamente dirigindo seu taxi por entre os painéis de neon das avenidas da grande cidade.

Taxi Driver
1976
Martin Scorsese
Robert De Niro, Jodie Foster, Cybill Shepherd

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Ciência por outro anglo



Footnote é um filme israelense que tem como plano de fundo a vida acadêmica. Eliezer Shkolnik sem dúvida é um solitário. Dedicou vinte anos de sua vida nos estudos do Talmude (livro da religião judaica), buscando provar sua teoria de que existiu uma versão mais antiga do que a que se tinha até o momento. Seus estudos tornaram-se obsoletos quando outro pesquisador acidentalmente encontra a prova cabal que Eliezer precisava para provar sua teoria e publica antes dele.

O filho de Eliezer, Uriel, também é pesquisador. Porém a maneira de conduzir suas pesquisas é bem diferente do modo como seu pai trabalha. Seu foco está em conseguir reconhecimento e dinheiro. Uriel alcança reconhecimento quando seu nome é indicado para vencer o prêmio Israel. Prêmio que seu pai vinha sendo indicado nos últimos vinte anos, mas nunca chegou a vencer. Quando a comissão organizadora do prêmio Israel ligou para avisar Uriel Shkolnik que ele havia vencido o prêmio, um engano acontece: ligam para o Dr. Shkolnik (Eliezer) dizendo que ele havia vencido o prêmio. Por dedicar tanto tempo de sua vida aos estudos, Eliezer não mantém uma relação saudável com seu filho. Sabendo disso, Uriel procura a comissão organizadora do evento para pedir que eles não desfaçam o engano, pois isso seria uma decepção muito grande para seu pai.

Partindo do princípio de que estar sozinho é uma opção, podemos pensar que a solidão de Eliezer está diretamente relacionada com seu método de pesquisa, que exige isolamento e dedicação total. Poderíamos encaixar Eliezer em um movimento recente denominado de slow cience. Esse movimento prega uma pesquisa com uma duração maior, que vise uma pesquisa de excelência. Enquanto Uriel, um pesquisador comum, busca reconhecimento e divulgação de seu trabalho. Reconhecimento que para a ciência atual é alcançado através de muitas publicações em revistas e livros conceituados. Tudo isso acaba afastando pai e filho não só na vida profissional como também na vida familiar. Comportamento que é reproduzido por Uriel com seu próprio filho.

O filme concorreu ao Oscar 2012 na categoria de melhor filme estrangeiro. Porém recebeu algumas críticas por conta dos “esclarecimentos” que aparecem durante o filme. É uma espécie de explicação sobre os acontecimentos da narrativa para o expectador. O diretor utiliza ferramentas estéticas como divisão da tela, narração off e divide os filme em capítulos, “Coisas que você precisa saber sobre Eliezer Shkolnik” é um exemplo das explicações que aparecem ao longo da narrativa. Este detalhe dá um aspecto cômico para algumas partes da película (o que não é ruim), porém dá a impressão de que se trata de um filme hollywoodiano e que o público não teria capacidade de compreender o filme sem as tais explicações. Apesar disso, Footnote é um bom filme, especialmente para nós, habitantes do mundo acadêmico.

Ficha técnica

Diretor: Joseph Cedar

Ano: 2011

País de origem: Israel

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain


A Solidão é vista, por nossa maioria, como um sentimento doloroso que nos acomete em determinadas circunstâncias. Afinal, quem nunca sentiu um vazio estando em casa sozinho sem uma programação? As pessoas veem solidão como algo pessoal, elas não pensam que estar só é uma característica de todos nós. Todos nós sentimos a necessidade de interagir com outras pessoas para nos sentirmos amados e incluídos no meio social. Mesmo com essa interação, nem sempre é possível deixar de se sentir só, a pessoa se isola de tudo e todos e acaba criando um mundo visto só por ela e só dela.

Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, a personagem principal Amélie é privada de ter contatos com outras crianças porque seu pai pensa que ela tem um problema cardíaco, sendo assim, ele não a deixa frequentar a escola. Amélie convive apenas com o pai ausente e a mãe neurótica. Com essa situação, Amélie cria um mundo muito particular e refugia-se nele.  

Já adulta, Amélie vive as consequências de sua infância. Não tem amigos próximos, não tem um namorado, não tem uma vida social ativa. Apenas tem o seu pai, que às vezes, ela o visita. Refugiada na solidão, Amélie cultiva os prazeres mais simples da vida.  Até que um dia, algo que mudará a vida dela, inesperadamente acontece. Amélie encontra uma caixinha com objetos infantis que havia sido perdida há décadas por um garotinho e resolve procurar o dono para devolver o pertence. Ao reparar a emoção do senhor Bretodeau ao reencontrar a caixinha, Amélie acredita que pode ajudar outras pessoas, levando sutilmente um pouquinho de seu mundo de sonho.


Após Amélie ajudar a todos com seus planos simples, ela recebe ajuda de seus colegas, e consegue ajudar uma última pessoa refugiada na solidão: ela mesma. Amélie compreende que precisa encarar a realidade e resolver sua vida estagnada antes que seja tarde demais.

Um roteiro de pura sensibilidade e inteligência, uma belíssima trilha sonora e fotografia contribuíram para que o filme fosse tão reconhecido publicamente. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain nos mostra a solidão das pessoas que vivem em uma mesma cidade, porém são centradas em seus próprios mundos.

Título Original: Le fabuleux destin d'Amélie Poulain
Ano: 2001
País: França
Duração: 120 min.
Diretor: Jean-Pierre Jeunet
Elenco: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Rufus, Yolande Moreau, Artus de Penguern, Urbain Cancelier, Dominique Pinon, Maurice Benichou.
Produção: Jean-Marc Deschamps, Claudie Ossard
Roteiro: Jean-Pierre Jeunet e Guillaume Laurant
Fotografia: Bruno Delbonnel
Trilha Sonora: Yann Tiersen

terça-feira, 3 de abril de 2012

Minha casa, minha língua


Em Casa Vazia, do koreano Kim Ki Duk, acompanhamos a estória de um sujeito que leva um estilo de vida peculiar. Nosso herói não tem nome, não tem endereço fixo, não tem emprego, não pede nada a ninguém. Sua técnica para sobreviver sem ser notado é engenhosa: passa o dia colando volantes com propagandas de comida etc. nas maçanetas de portas de casas e de noite entra naquela casa de onde a propaganda não foi removida. Estas costumam ser casas temporariamente vazias porque seus habitantes viajaram.

O protagonista não ocupa a casa por muito tempo. Come o que tem na geladeira, lava a roupa que tem no cesto, usa a escova de dentes que tem na pia, conserta o relógio, o rádio, a balança, dorme no sofá e parte no dia seguinte. Casas grandes, pequenas, em bairros nobres ou pobres, tanto faz: ele ocupa a casa que estiver vazia. Lá dentro, tira fotos de si ao lado de imagens das pessoas ausentes.

Solidão não se confunde com o sentimento de abandono, antes se liga à escolha de isolar-se e o desejo de mudança. O personagem principal escolhe ocupar as casas dos outros quando eles não estão. Ele escolhe não voltar para o mesmo lugar, não ter um lugar que representa a si mesmo. Ele escolhe não ter com quem conversar.

Numa casa, no entanto, há alguém. A moça que foi agredida e abandonada pelo marido percebe a presença do outro e acompanha seus movimentos pela casa sem ser vista. Numa dança de sombras, ela aprende com o estranho a arte de ocupar o espaço da intimidade alheia. Juntos, eles passam a ocupar casas e viver diversas aventuras (numa casa, são pegos dormindo; em outra casa, encontram um defunto etc.) sem, no entanto, trocar qualquer palavra. O pacto deles é forte, assim como o silêncio.

A proposta do cineclube é exibir filmes de acordo com algumas temáticas, de modo que possamos repensar os temas a partir dos filmes. Em Casa Vazia, temos, numa visão superficial, uma grande história de amor de duas pessoas em tão perfeita sintonia, que não precisam da linguagem verbal para se comunicar. Também numa visão superficial, um casamento não dá espaço à solidão. Numa visão menos superficial, percebemos que a modelo que vive numa mansão é tratada pelo marido como se fosse um objeto de difícil manuseio. Ela se sente como indica a balança quebrada: pesando 110kg. Para ela, o moço que conserta a balança significa uma possibilidade de mudança. Na cena final, contemplamos a leveza do amor dos dois. Mas em relação ao marido, ela se encolhe no silêncio. Não responder é uma escolha.

Não nos espantamos que um recém-nascido seja capaz de reconhecer, dentre todos os sons e ruídos que capta, a fala humana. Não estranhamos que somos compelidos a falar com bebês, plantas ou animais - mesmo que não tenhamos garantia de que somos compreendidos ou teremos resposta. Fazemos ligações com outras pessoas através da linguagem. Investimos horas (conversando ao vivo ou no telefone, escrevendo ou lendo cartas, e-mails, mensagens etc.) na comunicação através da linguagem, seja in presentia, ou absentia. Falamos muito, falamos sem pensar, falamos o que não devia ser dito, jogamos papo fora. Aprendemos e ensinamos através da linguagem, valorizamos quem se expressa bem e quem fala o que pensa. Optar por não falar é uma maneira de isolar-se. Assim como a casa dá pistas sobre a identidade de uma pessoa, a língua dá pistas de sua identidade. Como criar laços com uma pessoa que não mostra a sua identidade?


(Bin-jip, 2004)

• Direção: Ki-duk Kim

• Roteiro: Ki-duk Kim

• Gênero: Drama/Romance

• Origem: Coréia do Sul/Japão

• Duração: 88 minutos

• Tipo: Longa-metragem