Nigel (Hugh Grant) é o nosso olho na película . É através dele que tomamos conhecimento da multifacetada relação de Oscar (Peter Coyote) e Mimi (Emanuele Seigner, esposa de Polanski quando o filme foi rodado). Nigel e sua esposa Fiona (Kristin Scott Thomas) partem em uma viagem à Índia , numa espécie de terapia marital ; uma tentativa de salvar , ou "apimentar ", um relacionamento em franca decadência . E é durante essa pretensa segunda lua de mel que a história de Oscar e Mimi é contada.
Oscar sempre teve o sonho de ser um reconhecido escritor e após receber uma milionária herança tem a possibilidade de se mudar para a França, seguindo os passos de uma série de outros escritores por ele admirados. No entanto, se frustra com a literatura: torna-se um escritor sem leitores . Este fracasso nas letras é sublimado através de uma vida sexual verdadeiramente ativa . Quando relata a Nigel, em estilo claramente literário , a história de sua relação com Mimi, retrata a obsessão que o acomentera após encontrar Mimi no ônibus 96. O fracassado escritor fala de como não conseguia dormir , escrever , nem fazer nada enquanto não reencontrasse a moça de sapatinho branco.
Ao reaproximar o escritor de sua deusa de vestido de bolinhas e sapatinho branco , Polanski visivelmente caricatura o amor de conto de fadas . Isto fica muito claro nos elementos utilizados pelo diretor para retratar essa primeira "fase " do intenso relacionamento de Oscar e Mimi: o sapatinho branco , uma clara alusão à Cinderela; a construção medieval do restaurante (que lembra um castelo ) em que reencontra Mimi na cena que antecede a ida do casal para o seu "claustro amoroso "; as cenas do parque de diversões ; entre várias outras.
A história de amor que é contada com fortes doses de erotismo até que o escritor começa a questionar seus sentimentos , claramente assombrado pela sua forma de conduzir seus relacionamentos antes de se encantar por Mimi. Para ele , os casais deveriam se manter juntos até alcançar o clímax de sua relação , depois disso os relacionamentos naturalmente tenderiam para a decadência - que deveria ser evitada. Ele acreditava que com Mimi o ápice da relação já teria sido alcançado e era chegada a hora do adeus . No entanto , Oscar não consegue pôr um fim ao relacionamento, porque durante um bom tempo a voluptuosa Mimi faz com que os horizontes sexuais do casal sejam cada vez mais expandidos, adiando o fim da relação .
O sadomasoquismo , explorado estritamente durante o "jogo sexual " ao longo da primeira fase da relação , passa a ser a estrutura da "segunda fase ". Mimi, incapaz de compartilhar da leitura que Oscar faz do relacionamento, se submete a qualquer coisa para preservar a relação . Tal atitude fornece as condições para que o sadismo de seu amado aflore. O escritor vai tornando cada vez mais atroz o tratamento dispensado à companheira que , aos poucos , vai perdendo até os seus encantos estéticos . Com boas lembranças de Mimi, Oscar considerava que era a hora de explorar novos corpos . Mimi continua, com assustadora resignação, resistindo à tortura psicológica a que seu amado a submete. Oscar desiste de esperar que ela ponha por si mesma um fim à relação e, num astuto estratagema , a despacha para Martinica.
Mimi o joga ao chão , o que deixa Oscar paraplégico , mas ela não sofre qualquer sanção . Esse talvez seja o ponto mais fraco do filme . Fragilidades à parte , este acontecimento é fundamental para a trama de "Lua de Fel ", pois permite que a relação ressuscite com uma inversão completa de papéis. O sadomasoquismo aparece novamente , e não é à toa , pois nada que faz parte da trama de uma obra fílmica é gratuito . A explicação para os papéis da relação serem invertidos de modo tão brusco e com tamanha resignação pode ser buscada a partir dos conhecimentos em Psicologia do diretor do filme . O sadomasoquismo só se estabelece quando existe um sádico para bater e um masoquista para apanhar . Contudo , tanto os sádicos são potencialmente masoquistas quanto os masoquistas são potencialmente sádicos .
A explicação do masoquismo mais difundida na Psicologia afirma que o sadomasoquismo se instaura quando os sujeitos de uma relação se negam a enxergar os pontos obscuros e negativos de uma determinada relação . Esses pontos aparecem diversas vezes no filme de Polanski: Oscar defende a sua tese de que todo relacionamento, após alcançar o clímax , tende para a decadência . Não obstante , diversas vezes durante o filme ele vê o relacionamento se renovar através da exploração de novos horizontes sexuais , ou seja, de novos aspectos positivos . A relação de Oscar e Mimi é claramente dependente de novas experiências , porque ele não consegue aceitar outra perspectiva para o relacinamento que não esta viciada no gozo do singular , do inédito .
Polanski carrega nas cores em todas as fases da relação , o que pode causar certa confusão no espectador , porque para além de todo frisson e conturbação expostos com a relação , a mensagem do filme é transmitida de modo extremamente sutil : quando os aspectos negativos de uma relação são desprezados, essa relação ou desemboca em algo doentio ou fracassa . Desta forma , não é à toa que a pretensa segunda lua de mel de Nigel e Fiona se torna uma "lua de fel ".
Por Guilherme Veppo
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