segunda-feira, 14 de junho de 2010

Lua de mel?


Nigel (Hugh Grant) é o nosso olho na película. É através dele que tomamos conhecimento da multifacetada relação de Oscar (Peter Coyote) e Mimi (Emanuele Seigner, esposa de Polanski quando o filme foi rodado). Nigel e sua esposa Fiona (Kristin Scott Thomas) partem em uma viagem à Índia, numa espécie de terapia marital; uma tentativa de salvar, ou "apimentar", um relacionamento em franca decadência. E é durante essa pretensa segunda lua de mel que a história de Oscar e Mimi é contada.
Oscar sempre teve o sonho de ser um reconhecido escritor e após receber uma milionária herança tem a possibilidade de se mudar para a França, seguindo os passos de uma série de outros escritores por ele admirados. No entanto, se frustra com a literatura: torna-se um escritor sem leitores. Este fracasso nas letras é sublimado através de uma vida sexual verdadeiramente ativa. Quando relata a Nigel, em estilo claramente literário, a história de sua relação com Mimi, retrata a obsessão que o acomentera  após encontrar Mimi no ônibus 96. O fracassado escritor fala de como não conseguia dormir, escrever, nem fazer nada enquanto não reencontrasse a moça de sapatinho branco.  
Ao reaproximar o escritor de sua deusa de vestido de bolinhas e sapatinho branco, Polanski visivelmente caricatura o amor de conto de fadasIsto fica muito claro nos elementos utilizados pelo diretor  para retratar essa primeira "fase" do intenso relacionamento de Oscar e Mimi: o sapatinho branco, uma clara alusão à Cinderela; a construção medieval do restaurante (que lembra um castelo) em que reencontra Mimi na cena que antecede a ida do casal para o seu "claustro amoroso"; as cenas do parque de diversões; entre várias outras.
            A  história de amor que é contada com fortes doses de erotismo até que o escritor começa a questionar seus sentimentos, claramente assombrado pela sua forma de conduzir seus relacionamentos antes de se encantar por Mimi. Para ele, os casais deveriam se manter juntos até alcançar o clímax de sua relação, depois disso os relacionamentos naturalmente tenderiam para a decadência - que deveria ser evitada. Ele acreditava que com Mimi o ápice da relação teria sido alcançado e era chegada a hora do adeus. No entanto, Oscar não consegue pôr um fim ao relacionamento, porque durante um bom tempo a voluptuosa Mimi faz com que os horizontes sexuais do casal sejam cada vez mais expandidos, adiando o fim da relação.
            O sadomasoquismo, explorado estritamente durante o "jogo sexual" ao longo da primeira fase da relação, passa a ser a estrutura da "segunda fase". Mimi, incapaz de compartilhar da leitura que Oscar faz do relacionamento, se submete a qualquer coisa para preservar a relação. Tal atitude fornece as condições para que o sadismo de seu amado aflore. O escritor vai tornando cada vez mais atroz o tratamento dispensado à companheira que, aos poucos, vai perdendo até os seus encantos estéticos. Com boas lembranças de Mimi, Oscar considerava que era a hora de explorar novos corpos. Mimi continua, com assustadora resignação, resistindo à tortura psicológica a que seu amado a submete. Oscar desiste de esperar que ela ponha por si mesma um fim à relação e, num astuto estratagema, a despacha para Martinica.
            Livre de Mimi, Oscar procura com descomunal dedicação recuperar o tempo perdido. Deixa de escrever e passa a viver como um morcego, indo dormir pela manhã e partindo em busca de novos corpos à noite. Desta forma dois anos se passam, até que no desfecho de uma noitada em que Oscar tentava fazer um ménage à trois, ele é atropelado. Ele vegeta sozinho durante dias no hospital se recuperando do acidente. Sua primeira visita, para seu espanto, é Mimi que aparece novamente no esplendor da sua beleza, mais madura e segura de si.
            Mimi o joga ao chão, o que deixa Oscar paraplégico, mas ela não sofre qualquer sanção. Esse talvez seja o ponto mais fraco do filme. Fragilidades à parte, este acontecimento é fundamental para a trama de "Lua de Fel", pois permite que a relação ressuscite com uma inversão completa de papéis. O sadomasoquismo aparece novamente, e não é à toa, pois nada que faz parte da trama de uma obra fílmica é gratuito. A explicação para os papéis da relação serem invertidos de modo tão brusco e com tamanha resignação pode ser buscada a partir dos conhecimentos em Psicologia do diretor do filme. O sadomasoquismo se estabelece quando existe um sádico para bater e um masoquista para apanhar. Contudo, tanto os sádicos são potencialmente masoquistas quanto os masoquistas são potencialmente sádicos.
            A explicação do masoquismo mais difundida na Psicologia afirma que o sadomasoquismo se instaura quando os sujeitos de uma relação se negam a enxergar os pontos obscuros e negativos de uma determinada relação. Esses pontos aparecem diversas vezes no filme de Polanski: Oscar defende a sua tese de que todo relacionamento, após alcançar o clímax, tende para a decadência. Não obstante, diversas vezes durante o filme ele o relacionamento se renovar através da exploração de novos horizontes sexuais, ou seja, de novos aspectos positivos. A relação de Oscar e Mimi é claramente dependente de novas experiências, porque ele não consegue aceitar outra perspectiva para o relacinamento que não esta viciada no gozo do singular, do inédito.
Polanski carrega nas cores em todas as fases da relação, o que  pode causar certa confusão no espectador, porque para além de todo frisson  e conturbação expostos com a relação, a  mensagem do filme é transmitida de modo extremamente sutil: quando os aspectos negativos de uma relação são desprezados, essa relação ou desemboca em algo doentio ou fracassa. Desta forma, não é à toa que a pretensa segunda lua de mel de Nigel e Fiona se torna uma "lua de fel". 
Por Guilherme Veppo

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