Observando que nossos alunos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais,
(Vai passar)
(Vai passar)
decidimos exibir (em doses homeopáticas) a coletânea de DVDs sobre o percurso de Chico Buarque de Holanda. Neste terceiro disco, nos é apresentado um artista que soube driblar a ditadura.
O Brasil tem uma experiência democrática (sistema político caracterizado pelo voto popular) relativamente recente. As primeiras eleições a presidente foram em 1990, quando Fernando Collor de Mello assumiu. Todavia, não é desse tempo que Chico nos fala. O letrista refere-se ao tempo da ditadura militar, que foi iniciada em 1964, com o que os militares chamam de “Revolução”. Chico lembra do AI5 (um Decreto Lei que temporariamente suspendeu o modo convencional de julgar qualquer contravenção. A polícia se viu com o poder de punir infratores sem a intervenção do Poder Judiciário.):
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações.
(Vai passar)
(Vai passar)
Chico Buarque de Holanda não foi torturado fisicamente pela polícia que tinha poder supremo durante o AI5, mas desafiado pela censura a adaptar sua arte ao que a ditadura podia perceber:
Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés
(A volta do malandro)
(A volta do malandro)
Assim, fez músicas de protesto engenhosas, como por exemplo Cálice. Os censuradores leram ‘cálice’, mas o público entusiasmado ouviu ‘cale-se, pai’. Num tempo em que o Estado tinha cuidadosamente construído a auto-imagem do pai , Chico canta, em parceria com Milton Nascimento:
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado, eu permaneço atento
Na arquibancada, para a qualquer momento
Ver emergir o monstro da Lagoa.
(Cálice)
(Cálice)
O documentário Vai passar foi rodado predominantemente em Roma, onde Chico passou um ano no auge do AI5. Não chegavam notícias dos companheiros sumidos, voltar com mulher e criança pequena não era uma opção, mas também não se podia confiar inteiramente nos brasileiros que passavam por Roma (porque podiam ser agentes disfarçados):
Mas há milhões desses seres que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta de onde essa gente vem
São jardineiros, guardas noturnos, casais
São passageiros, bombeiros e babás
Já nem se lembram que existe um brejo da cruz
Que eram crianças e que comiam luz
(Brejo da Cruz)Depois de aproximadamente um ano em Roma, Chico Buarque voltou ao Brasil. Voltou porque lá não tinha o mesmo reconhecimento que tinha aqui, voltou porque lá era visto como um exótico, voltou porque seu lugar e seus amigos o chamaram de volta. Voltou fazendo barulho:
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
(Apesar de você)
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
(Apesar de você)
Este documentário não se presta apenas a mostrar o percurso de um artista individual que sobreviveu à ditadura, mas a apresentar os lugares por onde andou, as línguas que aprendeu, os contatos que fez. Além disso, descortina um pouco o processo de criação de canções quando há censuradores vigiando por cima do ombro. Contudo, não é um documentário preso no passado. Chico Buarque critica a classe média atual que insiste em votar em quem promete resolver o “problema da segurança” com a força policial. Quem viveu sob um regime militar sabe que dar poder absoluto à polícia significa abdicar da segurança, justamente porque o poder daqueles que deveriam garantir a segurança se torna arbitrário.
Título Original: Chico Buarque - Vai Passar - Brasil 2005
Com: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Mpb 4, Sergio Bardotti, Tom Tobim
Diretor: Roberto de Oliveira
Músicas deste DVD:
1- Vai Passar (Francis Hime / Chico Buarque)
2- Jorge Maravilha (Julinho da Adelaide)
3- Tanto Mar (Chico Buarque)
4- Como Se Fosse A Primavera (Pablo Milanês / Nicolas Guillén versão: Chico Buarque)
5- Risotto Nero (Chico Buarque / Sergio Bardotti)
6- Vai Levando (Caetano Veloso/ Chico Buarque)
7- Sabiá (Tom Jobim / Chico Buarque)
8- Cálice (Gilberto Gil / Chico Buarque)
9- Pelas Tabelas (Chico Buarque)
10- Brejo da Cruz (Chico Buarque)
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