sexta-feira, 20 de maio de 2011

Vai passar

Observando que nossos alunos

Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais,              
 (Vai passar)

decidimos exibir (em doses homeopáticas) a coletânea de DVDs sobre o percurso de Chico Buarque de Holanda. Neste terceiro disco, nos é apresentado um artista que soube driblar a ditadura.

O Brasil tem uma experiência democrática (sistema político caracterizado pelo voto popular) relativamente recente. As primeiras eleições a presidente foram em 1990, quando Fernando Collor de Mello assumiu. Todavia, não é desse tempo que Chico nos fala. O letrista refere-se ao tempo da ditadura militar, que foi iniciada em 1964, com o que os militares chamam de “Revolução”. Chico lembra do AI5 (um Decreto Lei que temporariamente suspendeu o modo convencional de julgar qualquer contravenção. A polícia se viu com o poder de punir infratores sem a intervenção do Poder Judiciário.):

Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações.                  
  (Vai passar)

Chico Buarque de Holanda não foi torturado fisicamente pela polícia que tinha poder supremo durante o AI5, mas desafiado pela censura a adaptar sua arte ao que a ditadura podia perceber:

Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés                       
   (A volta do malandro)

Assim, fez músicas de protesto engenhosas, como por exemplo Cálice. Os censuradores leram ‘cálice’, mas o público entusiasmado ouviu ‘cale-se, pai’. Num tempo em que o Estado tinha cuidadosamente construído a auto-imagem do pai , Chico canta, em parceria com Milton Nascimento:

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado, eu permaneço atento
Na arquibancada, para a qualquer momento
Ver emergir o monstro da Lagoa         
   (Cálice)

O documentário Vai passar foi rodado predominantemente em Roma, onde Chico passou um ano no auge do AI5. Não chegavam notícias dos companheiros sumidos, voltar com mulher e criança pequena não era uma opção, mas também não se podia confiar inteiramente nos brasileiros que passavam por Roma (porque podiam ser agentes disfarçados):

Mas há milhões desses seres que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta de onde essa gente vem
São jardineiros, guardas noturnos, casais
São passageiros, bombeiros e babás
Já nem se lembram que existe um brejo da cruz
Que eram crianças e que comiam luz          
     (Brejo da Cruz)

Depois de aproximadamente um ano em Roma, Chico Buarque voltou ao Brasil. Voltou porque lá não tinha o mesmo reconhecimento que tinha aqui, voltou porque lá era visto como um exótico, voltou porque seu lugar e seus amigos o chamaram de volta. Voltou fazendo barulho:

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
              
  (Apesar de você)

Este documentário não se presta apenas a mostrar o percurso de um artista individual que sobreviveu à ditadura, mas a apresentar os lugares por onde andou, as línguas que aprendeu, os contatos que fez. Além disso, descortina um pouco o processo de criação de canções quando há censuradores vigiando por cima do ombro. Contudo, não é um documentário preso no passado. Chico Buarque critica a classe média atual que insiste em votar em quem promete resolver o “problema da segurança” com a força policial. Quem viveu sob um regime militar sabe que dar poder absoluto à polícia significa abdicar da segurança, justamente porque o poder daqueles que deveriam garantir a segurança se torna arbitrário.

Título Original: Chico Buarque - Vai Passar - Brasil 2005
Com: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Mpb 4, Sergio Bardotti, Tom Tobim
Diretor: Roberto de Oliveira
Músicas deste DVD:
1- Vai Passar (Francis Hime / Chico Buarque)
2- Jorge Maravilha (Julinho da Adelaide)
3- Tanto Mar (Chico Buarque)
4- Como Se Fosse A Primavera (Pablo Milanês / Nicolas Guillén versão: Chico Buarque)
5- Risotto Nero (Chico Buarque / Sergio Bardotti)
6- Vai Levando (Caetano Veloso/ Chico Buarque)
7- Sabiá (Tom Jobim / Chico Buarque)
8- Cálice (Gilberto Gil / Chico Buarque)
9- Pelas Tabelas (Chico Buarque)
10- Brejo da Cruz (Chico Buarque)

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