terça-feira, 22 de maio de 2012

1970 – 2014: a indiferença dos escravos


Por Paulo Morais

Para o poeta mexicano Octavio Paz, a liberdade não é uma filosofia, mas um movimento da consciência que, em certos momentos da vida, leva o indivíduo a pronunciar um destes dois monossílabos: “sim” ou “não”.  Dito desta maneira, parece que o ato de escolher uma destas palavras é uma tarefa fácil. Como pode ser visto em vários momentos do filme Pra frente Brasil (Roberto Farias, 1982), até as escolhas aparentemente irrelevantes, como dividir uma corrida de táxi com outra pessoa, são acompanhadas de consequências. Diferente dos outros animais, o primata bípede com seu grande córtex cerebral não é somente o resultado daquilo que o seu código genético está programado a ser. Ao contrário dos outros animais que não têm outra alternativa senão viver da maneira que estão naturalmente destinados a viver, a vida dos seres humanos não é a simples repetição dos padrões da espécie. Por meio de “sins” e “nãos”, cada indivíduo é livre para inventar e escolher sua forma de vida e o seu destino, mas a metafísica envolvida na tarefa de escolher um destes dois monossílabos é tão complexa que escolhemos até quando nos esquivamos de escolher ou deixamos que outros escolham por nós.

            Durante a copa do mundo de 1970, época em que o Brasil apresentava índices inéditos de crescimento econômico e o governo do presidente Médici instaurava um clima de perseguição e terror aos opositores da ditadura militar, Jofre G. Fonseca (Reginaldo Faria), um cidadão, trabalhador e pagador dos seus impostos, bom pai, bom marido, mas sonso demais e tão débil mental quanto tantos outros trabalhadores da recém-criada classe média brasileira, é sequestrado por membros de uma milícia e torturado até a morte. Enquanto seu irmão e sua esposa tentam encontrá-lo, os diferentes personagens deixam claro que o regime ditatorial não foi mantido somente pela força dos golpistas, mas pelo comodismo e indiferença daqueles que eram livres para dizer “sim”, quando escolheram dizer um cômodo ou medroso “não”.

            Se, em 1970, pessoas morriam e não saía nos jornais por causa da censura, às vésperas da copa de 2014, os jornais não precisam ser censurados. O Estado já não precisa maquiar as notícias que falam das desigualdades e injustiças sociais, da vergonhosa concentração de renda, da flagrante exploração da pobreza ou das mortes causadas pelo descaso e corrupção governamental. Inebriada pelo sentimento ufanista gerado pelas facilidades de crédito, religiões empresariais, distrações midiáticas, marketing diuturno e crescimento econômico fundado em capital especulativo, a brava classe média brasileira se esconde atrás das grades de sua jaula domiciliar e, distraída e cansada, esquece que tem a liberdade de refletir: “Que direito, meu Deus? O que eu tô fazendo aqui? [...] Eu sou uma pessoa comum, com emprego, documento, família e pago imposto. Ninguém tem direito de fazer isso comigo”.

            Como preconizado na música Panis Et Circenses (Os Mutantes), dois anos antes da copa de 1970, os escravos-felizes, cômodos em frente a TV na sala de jantar, estavam ocupados em nascer e morrer (como qualquer outro animal não humano), enquanto pessoas perdiam suas vidas por insistirem em ser livres para dizer “não” aos torturadores que lhes exigiam respeito nos porões do DOI-CODI.

            Alguém já disse que o mal do mundo não são os tiranos, mas os indiferentes. 

Ano: 1982
Direção: Roberto Farias
País: Brasil
Duração: 105 min.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Então...

hoje, dia 17 de maio de 2012, foi deflagrada a greve nacional dos docentes. A duras penas, já aprendemos que não adianta fazer cineclube no campus quando não tem aulas, porque não tem alunos. Portanto, a sessão de hoje fica suspensa e vamos nos organizar para, a partir da semana que vem, voltar ao esquema cinegreve na escadaria da Reitoria.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Níveis de liberdade


A peça de teatro de autoria de Bosco Brasil Novas diretrizes para tempos de paz foi transformada em filme por Daniel Filho: Tempos de Paz. A narrativa se passa em 1945, depois do fim Segunda Guerra, quando aporta no Brasil um navio carregado de imigrantes. Um deles, o senhor Klausewitz (Dan Stulbach, altamente convincente no papel de imigrante autodidata), já chamava atenção de uma polonesa no navio. (Mas quem não entende polonês fica a ver navios nessa parte, porque não há legendas.) Na alfândega, Klausewitz chama atenção das autoridades: não tem bagagem, se diz agricultor e recita um poema de Drummond.


Suspeito de ser espião nazista, Klausewitz é retido e interrogado por um agente da polícia política de Getúlio Vargas, Segismundo (Tony Ramos, em atuação esplendorosa). Estranhando que o estrangeiro fale português, Segismundo sugere propina, mas o polonês não tem nada a oferecer além de suas memórias. O agente propõe um trato: se as memórias do pretenso agricultor o comoverem às lágrimas em dez minutos, ele carimba seu salvo-conduto. 


Klausewitz tinha desistido de ser ator na Europa devastada pela guerra e via no Brasil e na língua portuguesa a liberdade. Logo depois de aportar no lugar que lhe daria uma nova vida, é arbitrariamente detido. Sua liberdade depende de um agente que se revela ex-torturador.


Um aspecto da liberdade é este, ligado ao direito de ir e vir. Assim, o cárcere é o lugar da não-liberdade. Mas a liberdade apresenta outras facetas.


Segismundo e Klausewitz alternam monólogos em que reavivam suas memórias. Ambos concluem que não fizeram uso do livre-arbítrio em suas vidas. Segismundo sempre seguiu ordens, nunca se deu o direito de escolher por conta própria compadecer-se dos outros. Klausewitz sempre esteve presente em todas as desgraças da guerra, mas nunca fez nada: esteve presente quando seu ídolo morreu, quando sua esposa morreu, quando encontraram o corpo de seu pai, quando sua vida desmoronou com os bombardeios. A segunda faceta da liberdade é o livre-arbítrio: a liberdade de escolha.


Durante a interação, Segismundo deixa claro que a ficção não faz parte de sua vida. Nunca foi ao teatro, não reconhece Drummond como escritor, não se fala de cinema. Klausewitz, no entanto, mistura ficção e realidade. Porque na ficção ele tem a liberdade, tem uma fuga da realidade. A terceira faceta da liberdade é a ficção, o universo semelhante à realidade, que se confunde com ela, mas não é real. 


Por fim, temos a liberdade sendo discutida na Literatura. A parte de sua fala que comove o ex-torturador é um trecho de uma peça teatral, em que o personagem se questiona como pode ter mais instinto que uma ave, no entanto menos liberdade que ela; mais alma que uma fera, no entanto menos liberdade; mais escolha que um peixe, no entanto menos liberdade; mais vida que um riacho, no entanto, menos liberdade.






Ficha técnica:


Tempos de Paz
Brasil, 2009
Drama
Direção:
Daniel Filho
Roteiro:
Bosco Brasil
Elenco:
Tony Ramos, Dan Stulbach, Daniel Filho, Louise Cardoso, Ailton Graça

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A ruptura absoluta: solidão nas grandes cidades


Por Paulo Morais 

“Não acredito que se deva dedicar a vida à morbidez do egocentrismo. Acredito que alguém deve se tornar uma pessoa como as outras”. A partir destas ruminações, o protagonista do filme Taxi Driver (1976), do diretor Martin Scorsese, oferece elementos úteis para reflexões acerca da solidão, uma condição da existência de todos os seres humanos, que se mostra particularmente dramática nos “animais da noite” que circulam pelas ruas das grandes cidades. No final do século XIX, William James escreveu que as rupturas entre os pensamentos humanos são as mais absolutas da natureza, “nem contemporaneidade, nem proximidade espacial, nem similaridade de qualidade ou conteúdo são capazes de fundir os pensamentos”. A estranheza generalizada e os pequenos mal-entendidos presentes em quase todos os diálogos triviais ou significativos que Travis Bickle (Robert De Niro) mantém ao longo do filme são exemplos desta ruptura intersubjetiva. Seja por ser mal compreendido pelos outros, seja por ser incapaz de perceber o mundo a partir de uma perspectiva diferente da sua, Travis alterna momentos de empatia com situações nas quais a linguagem usada compartilha somente a mesma gramática e foge-lhe uma semântica comum.
É por meio das sutilezas da linguagem (verbal ou não verbal) que os pensamentos de uma pessoa podem se tornar parcialmente acessíveis ao pensamento de outra pessoa, mas os diálogos e monólogos do filme mostram a condição de isolamento vivenciada pelos habitantes das grandes cidades que, a despeito de falarem o mesmo idioma, não compartilham os mesmos significados e, ao tentar romper o isolamento, se afastam cada vez mais. Nas situações corriqueiras como, por exemplo, ao comprar doces e refrigerante em um cinema pornô, e também nas relações interpessoais significativas com a prostituta mirim Iris (Jodie Foster) ou com Betsy (Cybill Shepherd), Travis e seus interlocutores são incapazes de minimizar a ruptura entre os pensamentos e promover a aproximação intersubjetiva e o diálogo autêntico capaz de  antagonizar o isolamento descrito por James.
O roteirista do filme, Paul Schrader, afirmou que a profissão de motorista taxi foi o modo encontrado para representar a solidão típica dos centros urbanos, na qual a pessoa se percebe isolada mesmo com uma enorme quantidade de outras pessoas ao seu redor. Mesmo para um animal que, nas palavras de Dostoiévski, se adapta a tudo, a densidade populacional das grandes cidades, associada à qualidade precária da maior parte das relações interpessoais dos seus habitantes, é um fator de risco para a saúde dos seres humanos. Na tentativa de adaptar-se a um meio hostil, o animal humano, dotado de autoconsciência, naturalmente narcísico e só parcialmente gregário, se vê obrigado a executar a difícil tarefa de “se tornar uma pessoa como as outras” (que é uma estratégia útil para o indivíduo reduzir as chances da sua exclusão social) ao mesmo tempo em que precisa se firmar, a todo instante da vida, como uma pessoa única e diferente de todas as outras pessoas que existe (que é a consequência natural de possuir autoconsciência).
Apesar de negar os aspectos patológicos associados à idolatria das próprias características e acreditar que o indivíduo deva se adequar às demais pessoas, Travis, um ex-fuzileiro-naval exposto à incomunicabilidade e solidão da metrópole cosmopolita, se torna um motorista de taxi (em qualquer lugar e a qualquer hora) que deseja somente “trabalhar por muitas horas” para preencher suas noites de insônia. No entanto, as características de tal profissão contribuem para que Travis se torne o expectador egocêntrico de um mundo perverso e corrupto. Após “abater-se pelas coisas”, Travis deixa a condição de mero expectador e decide mostrar aos sacanas nojentos e aos animais da noite que ele é um homem que não aguenta mais, que é um indivíduo capaz de se opor à decadência e ao lixo da grande cidade. E, na solidão daquilo que parece ser os seus últimos pensamentos, Travis se torna o herói dos jornais, recebe uma carta de gratidão dos pais de Iris, revê os amigos, tem um breve, mas autêntico, diálogo com Betsy e se vai, solitariamente dirigindo seu taxi por entre os painéis de neon das avenidas da grande cidade.

Taxi Driver
1976
Martin Scorsese
Robert De Niro, Jodie Foster, Cybill Shepherd

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Ciência por outro anglo



Footnote é um filme israelense que tem como plano de fundo a vida acadêmica. Eliezer Shkolnik sem dúvida é um solitário. Dedicou vinte anos de sua vida nos estudos do Talmude (livro da religião judaica), buscando provar sua teoria de que existiu uma versão mais antiga do que a que se tinha até o momento. Seus estudos tornaram-se obsoletos quando outro pesquisador acidentalmente encontra a prova cabal que Eliezer precisava para provar sua teoria e publica antes dele.

O filho de Eliezer, Uriel, também é pesquisador. Porém a maneira de conduzir suas pesquisas é bem diferente do modo como seu pai trabalha. Seu foco está em conseguir reconhecimento e dinheiro. Uriel alcança reconhecimento quando seu nome é indicado para vencer o prêmio Israel. Prêmio que seu pai vinha sendo indicado nos últimos vinte anos, mas nunca chegou a vencer. Quando a comissão organizadora do prêmio Israel ligou para avisar Uriel Shkolnik que ele havia vencido o prêmio, um engano acontece: ligam para o Dr. Shkolnik (Eliezer) dizendo que ele havia vencido o prêmio. Por dedicar tanto tempo de sua vida aos estudos, Eliezer não mantém uma relação saudável com seu filho. Sabendo disso, Uriel procura a comissão organizadora do evento para pedir que eles não desfaçam o engano, pois isso seria uma decepção muito grande para seu pai.

Partindo do princípio de que estar sozinho é uma opção, podemos pensar que a solidão de Eliezer está diretamente relacionada com seu método de pesquisa, que exige isolamento e dedicação total. Poderíamos encaixar Eliezer em um movimento recente denominado de slow cience. Esse movimento prega uma pesquisa com uma duração maior, que vise uma pesquisa de excelência. Enquanto Uriel, um pesquisador comum, busca reconhecimento e divulgação de seu trabalho. Reconhecimento que para a ciência atual é alcançado através de muitas publicações em revistas e livros conceituados. Tudo isso acaba afastando pai e filho não só na vida profissional como também na vida familiar. Comportamento que é reproduzido por Uriel com seu próprio filho.

O filme concorreu ao Oscar 2012 na categoria de melhor filme estrangeiro. Porém recebeu algumas críticas por conta dos “esclarecimentos” que aparecem durante o filme. É uma espécie de explicação sobre os acontecimentos da narrativa para o expectador. O diretor utiliza ferramentas estéticas como divisão da tela, narração off e divide os filme em capítulos, “Coisas que você precisa saber sobre Eliezer Shkolnik” é um exemplo das explicações que aparecem ao longo da narrativa. Este detalhe dá um aspecto cômico para algumas partes da película (o que não é ruim), porém dá a impressão de que se trata de um filme hollywoodiano e que o público não teria capacidade de compreender o filme sem as tais explicações. Apesar disso, Footnote é um bom filme, especialmente para nós, habitantes do mundo acadêmico.

Ficha técnica

Diretor: Joseph Cedar

Ano: 2011

País de origem: Israel

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain


A Solidão é vista, por nossa maioria, como um sentimento doloroso que nos acomete em determinadas circunstâncias. Afinal, quem nunca sentiu um vazio estando em casa sozinho sem uma programação? As pessoas veem solidão como algo pessoal, elas não pensam que estar só é uma característica de todos nós. Todos nós sentimos a necessidade de interagir com outras pessoas para nos sentirmos amados e incluídos no meio social. Mesmo com essa interação, nem sempre é possível deixar de se sentir só, a pessoa se isola de tudo e todos e acaba criando um mundo visto só por ela e só dela.

Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, a personagem principal Amélie é privada de ter contatos com outras crianças porque seu pai pensa que ela tem um problema cardíaco, sendo assim, ele não a deixa frequentar a escola. Amélie convive apenas com o pai ausente e a mãe neurótica. Com essa situação, Amélie cria um mundo muito particular e refugia-se nele.  

Já adulta, Amélie vive as consequências de sua infância. Não tem amigos próximos, não tem um namorado, não tem uma vida social ativa. Apenas tem o seu pai, que às vezes, ela o visita. Refugiada na solidão, Amélie cultiva os prazeres mais simples da vida.  Até que um dia, algo que mudará a vida dela, inesperadamente acontece. Amélie encontra uma caixinha com objetos infantis que havia sido perdida há décadas por um garotinho e resolve procurar o dono para devolver o pertence. Ao reparar a emoção do senhor Bretodeau ao reencontrar a caixinha, Amélie acredita que pode ajudar outras pessoas, levando sutilmente um pouquinho de seu mundo de sonho.


Após Amélie ajudar a todos com seus planos simples, ela recebe ajuda de seus colegas, e consegue ajudar uma última pessoa refugiada na solidão: ela mesma. Amélie compreende que precisa encarar a realidade e resolver sua vida estagnada antes que seja tarde demais.

Um roteiro de pura sensibilidade e inteligência, uma belíssima trilha sonora e fotografia contribuíram para que o filme fosse tão reconhecido publicamente. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain nos mostra a solidão das pessoas que vivem em uma mesma cidade, porém são centradas em seus próprios mundos.

Título Original: Le fabuleux destin d'Amélie Poulain
Ano: 2001
País: França
Duração: 120 min.
Diretor: Jean-Pierre Jeunet
Elenco: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz, Rufus, Yolande Moreau, Artus de Penguern, Urbain Cancelier, Dominique Pinon, Maurice Benichou.
Produção: Jean-Marc Deschamps, Claudie Ossard
Roteiro: Jean-Pierre Jeunet e Guillaume Laurant
Fotografia: Bruno Delbonnel
Trilha Sonora: Yann Tiersen

terça-feira, 3 de abril de 2012

Minha casa, minha língua


Em Casa Vazia, do koreano Kim Ki Duk, acompanhamos a estória de um sujeito que leva um estilo de vida peculiar. Nosso herói não tem nome, não tem endereço fixo, não tem emprego, não pede nada a ninguém. Sua técnica para sobreviver sem ser notado é engenhosa: passa o dia colando volantes com propagandas de comida etc. nas maçanetas de portas de casas e de noite entra naquela casa de onde a propaganda não foi removida. Estas costumam ser casas temporariamente vazias porque seus habitantes viajaram.

O protagonista não ocupa a casa por muito tempo. Come o que tem na geladeira, lava a roupa que tem no cesto, usa a escova de dentes que tem na pia, conserta o relógio, o rádio, a balança, dorme no sofá e parte no dia seguinte. Casas grandes, pequenas, em bairros nobres ou pobres, tanto faz: ele ocupa a casa que estiver vazia. Lá dentro, tira fotos de si ao lado de imagens das pessoas ausentes.

Solidão não se confunde com o sentimento de abandono, antes se liga à escolha de isolar-se e o desejo de mudança. O personagem principal escolhe ocupar as casas dos outros quando eles não estão. Ele escolhe não voltar para o mesmo lugar, não ter um lugar que representa a si mesmo. Ele escolhe não ter com quem conversar.

Numa casa, no entanto, há alguém. A moça que foi agredida e abandonada pelo marido percebe a presença do outro e acompanha seus movimentos pela casa sem ser vista. Numa dança de sombras, ela aprende com o estranho a arte de ocupar o espaço da intimidade alheia. Juntos, eles passam a ocupar casas e viver diversas aventuras (numa casa, são pegos dormindo; em outra casa, encontram um defunto etc.) sem, no entanto, trocar qualquer palavra. O pacto deles é forte, assim como o silêncio.

A proposta do cineclube é exibir filmes de acordo com algumas temáticas, de modo que possamos repensar os temas a partir dos filmes. Em Casa Vazia, temos, numa visão superficial, uma grande história de amor de duas pessoas em tão perfeita sintonia, que não precisam da linguagem verbal para se comunicar. Também numa visão superficial, um casamento não dá espaço à solidão. Numa visão menos superficial, percebemos que a modelo que vive numa mansão é tratada pelo marido como se fosse um objeto de difícil manuseio. Ela se sente como indica a balança quebrada: pesando 110kg. Para ela, o moço que conserta a balança significa uma possibilidade de mudança. Na cena final, contemplamos a leveza do amor dos dois. Mas em relação ao marido, ela se encolhe no silêncio. Não responder é uma escolha.

Não nos espantamos que um recém-nascido seja capaz de reconhecer, dentre todos os sons e ruídos que capta, a fala humana. Não estranhamos que somos compelidos a falar com bebês, plantas ou animais - mesmo que não tenhamos garantia de que somos compreendidos ou teremos resposta. Fazemos ligações com outras pessoas através da linguagem. Investimos horas (conversando ao vivo ou no telefone, escrevendo ou lendo cartas, e-mails, mensagens etc.) na comunicação através da linguagem, seja in presentia, ou absentia. Falamos muito, falamos sem pensar, falamos o que não devia ser dito, jogamos papo fora. Aprendemos e ensinamos através da linguagem, valorizamos quem se expressa bem e quem fala o que pensa. Optar por não falar é uma maneira de isolar-se. Assim como a casa dá pistas sobre a identidade de uma pessoa, a língua dá pistas de sua identidade. Como criar laços com uma pessoa que não mostra a sua identidade?


(Bin-jip, 2004)

• Direção: Ki-duk Kim

• Roteiro: Ki-duk Kim

• Gênero: Drama/Romance

• Origem: Coréia do Sul/Japão

• Duração: 88 minutos

• Tipo: Longa-metragem

quinta-feira, 8 de março de 2012

Acompanhar até a morte


Os dois outros filmes da temática Morte - Dead Man e A Partida - contam estórias de rituais em que se acompanha  alguém para a morte. Em Dead Man, o personagem de Johnny Depp, William Blake, é acompanhado por Nobody até a morte segundo os rituais do indígena. Já no filme A Partida, o personagem principal assume, como profissão, o ritual de acompanhar a família sobrevivente ao se despedir do morto. Em Hanami, de Doris Dörrie, também temos a imagem do acompanhamento até a morte, mas o filme alemão aborda o tema de maneira mais complexa.

Rudi e Trudi são um casal na terceira idade. Vivem num vilarejo na Bavária, sul da Alemanha, rodeados por montanhas com picos nevados. Para não dizer que as pessoas desse lugar são conservadoras, diremos que são "conscientes de sua tradição". Tanto, que o ideal para Rudi seria não mudar jamais, manter a rotina certa e segura, seguir o caminho traçado. O diagnóstico de que Rudi tem apenas poucos meses de vida não é dado a ele, mas à esposa. Em vez de preparar o marido para a iminência da morte, ela organiza uma visita a Berlim, para rever os filhos. Ela toma para si a tarefa de acompanhar o marido nos seus últimos momentos de vida e unir a família dispersa em torno do homem ao qual dedicou sua vida.

Saindo da paisagem bucólica do campo, a metrópole sufoca o casal com seu constante movimento, prédios, pixações, falta de tempo, casas pequenas, sotaque estranho. Não reconhecem os filhos, seus modos de vida, não entendem suas escolhas, não percebem que as comidinhas regionais trazidas na bagagem não agradam mais, sentem-se deslocados. Partem dali para a praia, mais ao norte. Passeiam pela praia, paisagem incomum para o casal alpino e decidem voltar para casa. Na manhã seguinte, a esposa amanhece morta.

Todos os filhos, inclusive o preferido (que mora no Japão) reúnem-se ali para se despedir da mãe. Rudi volta para a casa grande e vazia. Começa então a sua grande viagem de tentar entender a esposa morta. Finalmente ele se interessa pelos desejos da mulher de visitar o filho no Japão, ver o Monte Fuji, aprender butô. Leva os pertences da companheira falecida para o Japão e metaforicamente acompanha a esposa na descoberta desse mundo exótico.

Em Tóquio, o filho essencialmente trabalha. A paisagem de concreto e neon é mais opressiva que a de Berlim. A casa é menor, a língua um enigma completo. Largado à própria sorte, Rudi estranha tudo. Através de outra linguagem, consegue estabelecer contato com uma dançarina de butô. Através dessa dança que ele custa a assimilar, que lhe causava incômodo quando transformava a esposa, Rudi acompanha a mulher e arranja uma companheira no país desconhecido.

O filme abre com a declaração de Trudi que somente iria ao Japão se fosse acompanhada do marido. Por vias tortas, é isso que acontece: mesmo separados fisicamente, ela lhe faz companhia. E ao acompanhá-lo nessa viagem, abre ao marido uma nova forma de ver o mundo. Assim como vida e morte fecham um ciclo, hanami, a festa das cerejeiras em flor, ápice da primavera nipônica, encerra a estória triste, mas bela de pessoas que caminham juntas enquanto têm tempo.

É possível identificar no filme alguns caminhos e lugares concretos e metafóricos. Do vilarejo em que os destinos das pessoas costumam ser predestinados (o filho do padeiro será padeiro, o bastardo pobre não vai se casar com a filha do fazendeiro) saem os filhos. Seus caminhos os levam para cidades grandes e modernas, onde descobrem um mundo novo e uma vasta paleta de possibilidades de como conduzir suas vidas. Segundo a tradição, o lugar de Trudi é ao lado do marido, mas ela se encanta pelo lugar escolhido pelo filho preferido. O marido só percorre o caminho ao país desconhecido quando da esposa restam apenas memórias. Os desejos da esposa o acompanham a um lugar em que convivem tradição e tecnologia.


Título Original: Kirschblüten - Hanami.
Origem: 
Alemanha / França, 2008.
Direção: 
Doris Dörrie.
Roteiro: 
Doris Dörrie.
Produção: 
Harald Kugler e Molly Von Furstenberg.
Fotografia: 
Hanno Lentz.
Edição: 
Frank C. Muller e Inez Regnier.
Música: 
Claus Bantzer.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A partida



Cada particularidade da morte nos afeta. Seja o motivo ou momento inesperado, todo falecimento tem um ritual de passagem no qual seguimos dependendo dos costumes locais e principalmente da crença religiosa. Todos nós possuímos uma herança cultural que define a nossa visão da morte. As nossas interpretações atuais sobre a morte constituem parte da herança que as gerações anteriores, as antigas culturas, nos deixaram. Seja qual for o rito de passagem, há surpresa e tristeza em toda morte.

Com um roteiro simples e sem rodeios, o filme A partida mostra o cotidiano de um violoncelista que perde seu emprego tão sonhado após a Orquestra na qual ele trabalhava ser desfeita. Ele volta à cidade natal para morar na casa da mãe e de um pai que mal conheceu e acaba conseguindo um emprego pouco respeitado: torna-se um “nokanshi”, um mestre em limpar, maquiar e vestir cadáveres. Essa função advém de uma antiga tradição japonesa de deixar o morto limpo, belo e bem tratado para seu rito de passagem, função antes exercida pelas famílias dos mortos.

Interessante a forma como as outras personagens veem essa profissão. Para elas, trata-se de uma profissão vergonhosa, indigna e até mesmo sórdida, o que implica uma visão negativa por parte destes em relação ao contato entre mortos e vivos, bem como uma negação de uma antiga tradição cultural.

Para Daigo, o manuseio de cadáveres tornou a morte algo material, mas, conforme ele foi se adaptando à profissão, ele começou a perceber o sentido e a importância de todo ritual. A morte deixou de ser vista como algo plenamente material, e passou a ter beleza após todo cuidado que ele tinha com o corpo do falecido para o rito de passagem. 

Falar sobre a morte provoca certo desconforto, pois damos de cara com a finitude, o inevitável, a certeza de que um dia a vida chega ao fim, porém, no filme. além de mostrar um panorama interessante sobre a morte como um ato cultural japonês, cheio de beleza, nos fala também sobre a vida, as mudanças e o passado dos personagens.


FICHA-TÉCNICA:

Título Original: Okuribito
Lançamento: 2008
País de origem: Japão
Direção: Yojiro Takita
Atores: Masahiro Motoki, Tsutomu Yamazaki, Ryoko Hirosue, Kazuko Yoshiyuki.
Duração: 130 min
Gênero: Drama
 
Premiações:
OSCAR
Melhor Filme Estrangeiro

FESTIVAL DE MONTREAL
Grand Prix des Amériques

FESTIVAL DE PALM SPRINGS
Melhor Filme - Júri Popular

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Homem morto




O cineclube deLírio está de volta. Iniciamos nossas atividades este ano com nossa primeira temática: Morte. Abrindo os trabalhos nesta nova temática, apresentamos Dead Man. Dirigido por Jim Jarmusch, Dead man é um filme que foge aos padrões hollywoodianos, mesmo que à primeira vista se trate de um típico Western. Este mérito pode ser atribuído ao diretor que tem fama de ser independente e ousado.

O filme se passa na segunda metade do século XIX e conta a história de Willian Blake, que deixa sua cidade natal (Cleveland, onde recentemente tinha perdido seus pais, noiva e se desfeito de todos os seus bens) e parte em uma jornada em direção à cidade de Machine, situada no fim de uma estrada de ferro. Ele segue para esta cidade em busca de um emprego que lhe havia sido prometido em uma carta. Logo ele descobre, sob a mira de uma arma, que o emprego agora era de outra pessoa.

Após esta primeira desventura, Blake conhece uma linda mulher e com ela passa uma noite, porém novamente as coisas não saem do jeito esperado e ele deixa o quarto da jovem com uma bala alojada no corpo e dois cadáveres no aposento. A partir daí começa a jornada de Blake em direção à sepultura. Não só pelo fato de estar ferido, mas também porque agora é procurado pelo assassinato de uma mulher e do filho do dono da fábrica de onde ele havia sido expulso.

Em meio a estas desventuras, Blake é encontrado por um nativo-americano que tenta ajudá-lo, mas não consegue, pois a bala está muito próxima do coração. “Você matou o homem branco que te matou?” pergunta “Nobody”, já percebendo a situação de morte certa. Situação que só Blake parece não perceber: “não estou morto!” diz Blake. Juntos eles tentam fugir das inúmeras pessoas que agora procuram matar Blake (em busca da recompensa).

Dead man é um filme que definitivamente fala de morte, só que não a vemos no filme como estamos acostumados a ver em nossa sociedade. Apesar de sabermos que um dia o fim chegará para todos, sempre nos surpreendemos com sua chegada, gerando sentimento de perda, dor e tristeza. Esses sentimentos não aparecem em Dead man. Na película, a morte aparece como algo corriqueiro e sem valor.

O filme se passa na época da fundação da nação americana e nele também é abordada a questão da relação entre as culturas. Percebemos o estranhamento entre um cidadão “civilizado” e um “selvagem” através da figura dos personagens de Blake e Nobody. A relação entre os dois personagens é bem interessante, pois percebemos o grande choque entre as culturas. A morte aqui aparece em forma de destruição. Por diversas vezes vemos no filme cenas de aldeias indígenas destruídas pelo homem branco “civilizado”, que quase exterminou os povos nativos.

A película lembra as tragédias clássicas. Os personagens não têm controle sobre suas vidas, são guiados pelo “destino”. Ainda dentro do trem Blake é avisado que caminha para a sepultura e Nobody diz (confundindo o poeta com o moribundo) que os versos de Blake seriam escritos com sangue. Tudo dá errado para o personagem e ninguém escapa do fim trágico: a morte.

Título original: Dead man
Diretor: Jim Jarmusch
Duração: 121 min
Ano: 1995