terça-feira, 31 de maio de 2011

Anos Dourados



A temática especial sobre a obra de Chico Buarque de Holanda exibiu até agora três DVDs: Meu caro amigo, À flor da pele e Vai passar. Cada exibição apresentou assuntos diferenciados: amizade, alma feminina, amor, ditadura militar, censura entre outros.

Na sequência, o quarto DVD intitulado Anos Dourados tem como cenário o Jardim Botânico. Lugar onde Chico desbrava a natureza e relembra as mais belas histórias, principalmente sobre sua parceria com o renomado músico Tom Jobim. O local das gravações desse filme não foi escolhido ao acaso, pois Tom era um verdadeiro apreciador da natureza. Ele se interessava desde pequeno pelas peculiaridades brasileiras e, sobretudo, pela etimologia da fauna e flora.

A influência de Tom Jobim sobre a música de Chico Buarque foi marcada com a canção Chega de Saudade. Foi daí que Chico começou a se interessar de verdade em fazer música e a entrar no mundo da bossa nova.

Chico Buarque considera Tom mais do que um músico, um “maestro soberano”, como diz na canção Paratodos, escrita em homenagem ao seu grande amigo:

“O meu pai era paulista/ Meu avô pernambucano/ O meu bisavô mineiro/ Meu tataravô baiano/ Meu maestro soberano/ foi Antônio Brasileiro.” (Paratodos, 1993)

Ambos mantinham uma parceria e amizade inigualável. Tom Jobim entrou como parceiro a partir da música Retrato em Branco e Preto. Ele deu a parte instrumental para que Chico colocasse a letra e assim continuou a parceria com outras músicas como: Pois é, Sabiá, Anos Dourados, Eu te amo, Olha Maria etc. Houve outras parcerias, como por exemplo, com o músico Edu Lobo. Os dois compuseram em especial a música Choro Bandido em homenagem ao Tom. Um trecho nos diz:

“Fez das tripas a primeira lira/ que animou todos os sons/ E daí nasceram as baladas/ E os arroubos de bandidos como eu/ Cantando assim:/ Você nasceu pra mim.” (Choro Bandido, 1985)

Esta canção ressalta a consideração que Chico tinha e ainda tem com relação a Tom. Ele comenta a importante influência que Tom Jobim teve sobre a bossa nova brasileira.

Entre músicas e depoimentos, aparecem também conversas entre os dois amigos falando de vários assuntos, como: o rock and roll; a crítica sobre generais e artistas; o  folclore e a Lua Cris (citada na música Imagina) e a etimologia das palavras. Chico fala também do surgimento da Bossa Nova, do cinema e do teatro que impulsionaram o sentimento de orgulho no brasileiro.

Mesmo com mais de cinquenta anos de criação, a bossa nova ainda se faz presente no mundo inteiro e é regravada a todo o momento. A música de Tom exerce sobre outros compositores como uma matriz da música brasileira moderna. Até hoje, músicas consagradas como: Garota de Ipanema, Águas de Março, A Felicidade, Retrato em Branco e Preto, Chega de saudade, Anos Dourados são regravadas por músicos admiradores de Tom. Por exemplo, a cantora Ana Carolina que regravou a canção Retrato em Branco e Preto.

Segundo Chico, Tom Jobim foi um grande expoente da música brasileira. E isso fica bem claro ao assistirmos essa magnífica série retrospectiva, na qual nos deparamos com músicos geniais de grande sucesso, porém de uma humildade gigantesca.

Título Original: Chico Buarque – Anos Dourados - Brasil 2005
Com: Chico Buarque, Tom Jobim, Milton Nascimento, Paula Morelenbaum, Edu Lobo e Caetano Veloso.
Direção: Roberto de Oliveira
Músicas deste DVD:   
1- Choro Bandido (Chico Buarque/Tom Jobim)
2- Eu te amo (Chico Buarque/Tom Jobim/Paula Morelenbaum)
3- Olha Maria (Tom Jobim/Milton Nascimento)
4- Imagina (Chico Buarque/Tom Jobim/Paula Morelenbaum)
5- Sem Você (Chico Buarque / Tom Jobim)
6- Chega de Saudade (Chico Buarque/Edu Lobo)
7- Anos Dourados (Tom Jobim / Chico Buarque)
8- Anos Dourados (Chico Buarque/Caetano Veloso)
9- Lígia (Chico Buarque) 
10-Piano na Mangueira (Chico Buarque/Tom Jobim)                                                                  
11-Sem Compromisso (Chico Buarque/Tom Jobim)                                                                            
12-A felicidade (Chico Buarque/Tom Jobim/Milton Nascimento)                                                 
13-Se todos fossem iguais a Você (Chico Buarque/Tom Jobim/Milton Nascimento)



sexta-feira, 20 de maio de 2011

Vai passar

Observando que nossos alunos

Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais,              
 (Vai passar)

decidimos exibir (em doses homeopáticas) a coletânea de DVDs sobre o percurso de Chico Buarque de Holanda. Neste terceiro disco, nos é apresentado um artista que soube driblar a ditadura.

O Brasil tem uma experiência democrática (sistema político caracterizado pelo voto popular) relativamente recente. As primeiras eleições a presidente foram em 1990, quando Fernando Collor de Mello assumiu. Todavia, não é desse tempo que Chico nos fala. O letrista refere-se ao tempo da ditadura militar, que foi iniciada em 1964, com o que os militares chamam de “Revolução”. Chico lembra do AI5 (um Decreto Lei que temporariamente suspendeu o modo convencional de julgar qualquer contravenção. A polícia se viu com o poder de punir infratores sem a intervenção do Poder Judiciário.):

Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações.                  
  (Vai passar)

Chico Buarque de Holanda não foi torturado fisicamente pela polícia que tinha poder supremo durante o AI5, mas desafiado pela censura a adaptar sua arte ao que a ditadura podia perceber:

Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés                       
   (A volta do malandro)

Assim, fez músicas de protesto engenhosas, como por exemplo Cálice. Os censuradores leram ‘cálice’, mas o público entusiasmado ouviu ‘cale-se, pai’. Num tempo em que o Estado tinha cuidadosamente construído a auto-imagem do pai , Chico canta, em parceria com Milton Nascimento:

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado, eu permaneço atento
Na arquibancada, para a qualquer momento
Ver emergir o monstro da Lagoa         
   (Cálice)

O documentário Vai passar foi rodado predominantemente em Roma, onde Chico passou um ano no auge do AI5. Não chegavam notícias dos companheiros sumidos, voltar com mulher e criança pequena não era uma opção, mas também não se podia confiar inteiramente nos brasileiros que passavam por Roma (porque podiam ser agentes disfarçados):

Mas há milhões desses seres que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta de onde essa gente vem
São jardineiros, guardas noturnos, casais
São passageiros, bombeiros e babás
Já nem se lembram que existe um brejo da cruz
Que eram crianças e que comiam luz          
     (Brejo da Cruz)

Depois de aproximadamente um ano em Roma, Chico Buarque voltou ao Brasil. Voltou porque lá não tinha o mesmo reconhecimento que tinha aqui, voltou porque lá era visto como um exótico, voltou porque seu lugar e seus amigos o chamaram de volta. Voltou fazendo barulho:

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
              
  (Apesar de você)

Este documentário não se presta apenas a mostrar o percurso de um artista individual que sobreviveu à ditadura, mas a apresentar os lugares por onde andou, as línguas que aprendeu, os contatos que fez. Além disso, descortina um pouco o processo de criação de canções quando há censuradores vigiando por cima do ombro. Contudo, não é um documentário preso no passado. Chico Buarque critica a classe média atual que insiste em votar em quem promete resolver o “problema da segurança” com a força policial. Quem viveu sob um regime militar sabe que dar poder absoluto à polícia significa abdicar da segurança, justamente porque o poder daqueles que deveriam garantir a segurança se torna arbitrário.

Título Original: Chico Buarque - Vai Passar - Brasil 2005
Com: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Mpb 4, Sergio Bardotti, Tom Tobim
Diretor: Roberto de Oliveira
Músicas deste DVD:
1- Vai Passar (Francis Hime / Chico Buarque)
2- Jorge Maravilha (Julinho da Adelaide)
3- Tanto Mar (Chico Buarque)
4- Como Se Fosse A Primavera (Pablo Milanês / Nicolas Guillén versão: Chico Buarque)
5- Risotto Nero (Chico Buarque / Sergio Bardotti)
6- Vai Levando (Caetano Veloso/ Chico Buarque)
7- Sabiá (Tom Jobim / Chico Buarque)
8- Cálice (Gilberto Gil / Chico Buarque)
9- Pelas Tabelas (Chico Buarque)
10- Brejo da Cruz (Chico Buarque)

domingo, 15 de maio de 2011

Sensibilidade à flor da pele


O segundo DVD da série sobre a obra de Chico Buarque, intitulado À Flor da Pele, aborda a temática feminina nas canções compostas por Chico. O cenário é perfeito: Paris. A partir daí já percebemos a presença do feminino. Chico faz uma relação direta entre a cidade e a mulher, pois foi em Paris que ele teve os primeiros contatos com a mulher, principalmente por causa dos filmes franceses que foram os primeiros a apresentarem mulheres nuas. “Há sempre um grande mistério para mim na alma feminina” diz Chico. A partir dessa definição, Chico fala sobre a temática feminina, apresentando suas principais canções sobre o assunto.

Nos anos dourados da música brasileira, havia o costume de se escrever canções com o Eu- lírico feminino. A primeira canção desse tipo escrita por Chico foi Com açúcar, com afeto, atendendo a um pedido da cantora Nara Leão, que pediu a Chico uma música que falasse daquelas mulheres que buscavam servir a seus maridos. Nesse período, eram comuns as canções que exaltavam as qualidades domésticas das mulheres. Eram músicas que apresentavam uma mulher submissa, que cuidava da casa e que implorava por um pouco de atenção.

A partir do final da década de 60, com a revolução feminina, houve uma mudança de foco nos canções com Eu- lírico feminino. Aparecia nas músicas uma mulher mais livre, independente, que não é mais reprimida pelo marido. A primeira música de Chico a mostrar esse novo posicionamento da mulher na sociedade é Olhos nos olhos, originalmente composta para ser gravada por Maria Bethânia.

À flor da pele é a sensibilidade, é a poesia, é a genialidade de Chico Buarque em 14 canções que tratam da temática feminina, e é apenas uma pitada do que está por vir ao longo da temática deste mês, dedicada à obra de Chico.

Direção: Roberto de Oliveira
Brasil, 96 min.
Produção Artística: Vinícius França
Direção de Fotografia: João Wainer
Cinegrafista: Juarez Pavelack
Pesquisa e Texto: Ricardo Arnt
Produção: Camila Villas-Boas, Jorge Saad Jafer
Assistente de Produção: André Arraes
Edição: André Wainer
Trilhas Musicais: Luiz Cláudio Ramos
Músicas:
Tatuagem (Chico Buarque/ Caetano Veloso), Esse cara (Chico Buarque/ Caetano Veloso), Sem fantasia (Chico Buarque/ Caetano Veloso), Cotidiano (Chico Buarque), O que será (à flor da pele) (Chico Buarque/ Milton Nascimento), Com açúcar, com afeto (Chico Buarque/ Nara Leão), Feijoada completa (Chico Buarque/ Francis Hime), Teresinha (Chico Buarque/ Francis Hime), Mulheres de Atenas (Chico Buarque/ Francis Hime), Olhos nos olhos (Chico Buarque/ Francis Hime), Morena dos olhos d’água (Chico Buarque/ Leo Jaime), As minhas meninas (Chico Buarque), As atrizes (Chico Buarque), Joana Francesa (Chico Buarque).
Músicos:
LUIZ CLÁUDIO RAMOS
CARLOS BALA
JORGE HELDER
JOÃO REBOUÇAS
DON CHACAL
GABRIEL GROSSI
FRANKLIN DA FLAUTA
MARCELO BERNARDES
PASCHOAL PERROTA
NOVELLI
PETER DAULSBERG
CÉSAR CAMARGO MARIANO
WILSON DAS NEVES
VICTOR BIGLIONE
CHICO BATERA
MACAÉ
ZECA ASSUMPÇÃO
PAULO JOBIM
DANIEL JOBIM
DANILO CAYMMI
MARCOS AMA
SÉRGIO CARVALHO
MÁRCIO EYMARD MALARD
CONJUNTO ATLÂNTICO
PAULO BRAGA
LUÍS MAIA
HELIO BELMIRO

terça-feira, 10 de maio de 2011

Meu caro amigo Chico



Meu Caro Amigo é o primeiro DVD de uma série de doze DVD´s sobre a Retrospectiva da obra de Chico Buarque, organizada pela R.W.R (EMI Music Brasil Ltda.), em 2005. Neste mês de maio e primeira semana de junho, o Cinecube DeLírio vai exibir os quatro primeiros. Os demais serão exibidos oportunamente em outras sessões especiais. Para conhecer essa obra, Chico nos diz num trecho de Futuros Amantes:

“Não se afobe, não/Que nada é pra já/O amor não tem pressa/Ele pode esperar/em silêncio/Num fundo de armário/Na posta restante/Milênios, milênios no ar...”

É exatamente assim a vida e obra de Chico Buarque, sem pressa e com muita precisão. O cineclube DeLírio apresenta essa edição especial sobre nosso Chico Buarque com o intuito de compartilhar um Brasil riquíssimo, pouco conhecido pelos brasileiros. Chico retrata a própria cultura brasileira em sua obra. Uma música universal, de qualidade invejável, feita por um sujeito simples, exemplo de humildade e de genialidade.

No filme, Chico fala da sua relação com a cidade do Rio de Janeiro, seu deslumbramento e o olhar estrangeiro que ele prefere manter sobre a sua cidade natal. Meu Caro Amigo trata das parcerias de Chico. Ele nos conta como elas acontecem, as escolhas, os momentos e as criações oriundas dessas parcerias. Isso fica claro em momentos inesquecíveis como uma cena de 1978, quando Chico e Tom Jobim dão mais uma “passada” em Falando de Amor, para ver se a letra já está pronta. Temos ainda uma pincelada sobre o período da ditadura, os chamados “anos de chumbo”, a censura e os “dribles” que os compositores eram obrigados a dar. Chico fala também da relação entre literatura e letra de música, das dificuldades presentes no momento da criação.

Nessa série, é quase obrigatório assistir o making off e uma sessão chamada “Chico Fala”. Quando somos apresentados aos responsáveis pela obra, aos truques de luz, figurino etc. Mas o mais envolvente é ouvir Chico rememorando seus parceiros e amigos, o carinho dedicado a cada pessoa que contribuiu com essa produção fenomenal da música brasileira. Os gênios precisam dos amigos e amigos Chico os tem de sobra.

Direção: Roberto de Oliveira
Brasil, 109 min.
Produção Artística: Vinícius França
Direção de Fotografia: João Wainer
Cinegrafista: Juarez Pavelack
Pesquisa e Texto: Ricardo Arnt
Produção: Camila Villas-Boas, Jorge Saad Jafer
Assistente de Produção: André Arraes
Edição: André Wainer
Trilhas Musicais: Luiz Cláudio Ramos

Músicas:
Renta Maria (Ivan Lins/Chico Buarque), Valsinha (Vinícius de Moraes/Chico Buarque), Falando de Amor (Antonio Carlos Jobim), Maninha (Chico Buarque), Pois é (Antonio Carlos Jobim/Chico Buarque), Samba pra Vinicius (Toquinho/Chico Buarque), Samba de Orly (Chico Buarque/Toquinho), Choro Bandido (Edu Lobo/Chico Buarque), Nuvem Negra (Djavan), Samba do Grande Amor (Chico Buarque), A Rosa (Chico Buarque), Maricotinha (Dorival Caymmi), A Vizinha do Lado (Dorival Caymmi), João Valentão (Dorival Caymmi), Vestido de Bolero (Dorival Caymmi), Meu Caro Amigo (Francis Hime/Chico Buarque), Paratodos (Chico Buarque), Futuros Amantes (Chico Buarque), Olha Maria (Antonio Carlos Jobim/Chico Buarque/Vinícius de Moraes), Anos Dourados (Antonio Carlos Jobim/Chico Buarque) e Pivete (Francis Hime/Chico Buarque).

Músicos:
LUIZ CLÁUDIO RAMOS
CARLOS BALA
JORGE HELDER
JOÃO REBOUÇAS
DON CHACAL
GABRIEL GROSSI
FRANKLIN DA FLAUTA
MARCELO BERNARDES
PASCHOAL PERROTA
NOVELLI
PETER DAULSBERG
CÉSAR CAMARGO MARIANO
WILSON DAS NEVES
VICTOR BIGLIONE
CHICO BATERA
MACAÉ
ZECA ASSUMPÇÃO
PAULO JOBIM
DANIEL JOBIM
DANILO CAYMMI
MARCOS AMA
SÉRGIO CARVALHO
MÁRCIO EYMARD MALARD
CONJUNTO ATLÂNTICO
PAULO BRAGA
LUÍS MAIA
HELIO BELMIRO

Coro:
MARIA DO CARMO BUARQUE DE HOLANDA (PII)
ANA MARIA BUARQUE DE HOLANDA (ANA DE HOLANDA)
ANA JOBIM
BETH JOBIM
CONSIGLIA LA TORRE
CANTORA FORTUNA
BEL
ADI DE SOUZA

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O gênio e o ciúme



Wolfgang Amadeus Mozart, segundo Norbert Elias, “simplesmente desistiu”. Mozart “morreu pela falta de significado de sua vida, por ter perdido completamente a crença de que seus desejos mais profundos seriam satisfeitos” (1995:9). E continua Elias,

"Duas fontes de sua determinação de viver, dois mananciais que alimentavam seu sentimento de auto-estima e importância, estavam quase secos: o amor de uma mulher em quem pudesse confiar, e o amor do público vienense por sua música. Por algum tempo ele gozara de ambos; e ambos ocupavam o lugar mais alto na hierarquia de seus desejos. Há muitas razões para se crer que, em seus últimos anos de vida, ele sentia cada vez mais que perdera os dois. Esta era a sua tragédia – e a nossa – enquanto seres humanos" (ELIAS, 1995:9).

Amadeus, de Milos Formam, conta a história desse homem único, dotado com essas inexplicáveis capacidades que fazem dos gênios, gênios. No Brasil, esse filme não é recomendado para menores de 14 anos. Curioso, não?! Pode ver a carnificina dos programas sensacionalistas, ditos “policiais”, que passam ao meio-dia, na hora do almoço (para os que almoçam!), mas não pode ver a história de um dos maiores compositores do planeta...

O filme começa pelo final, um formato de roteiro um tanto conhecido e consagrado. Antonio Salieri (F. Murray Abraham), grande maestro e compositor do Séc. XVIII, tenta suicídio em vão. Logo é levado para um daqueles lugares horríveis que um dia se transformariam em nossos modernos hospitais, manicômios etc, como demonstrou Foucault em seus escritos. No dia seguinte, chega um padre para ouvir a confissão de um pecador. Daí em diante, somos levados pelas memórias de Salieri ao fascinante mundo da música de corte daquele século. É nesse cenário que tomamos conhecimento da vida de um gênio, um menino prodígio que encanta a todos por onde passa. Um menino que nos deixou uma obra fenomenal e atemporal, por isso mesmo clássica.

Logo virão os conflitos de geração, as incompreensões da obra de Mozart. Como diz Salieri, referindo-se à obra daquele homem considerado um rude, num dos momentos agonísticos de sua estranha admiração por Mozart, “a beleza mais absoluta”...

Estranho sentimento esse, um misto de inveja, ciúme e contemplação divina. A obra de Mozart, muito florida e alegre, brincando com os campos harmônicos, com as modulações, revelou a mediocridade dos compositores renomados da época. Mozart jamais teria sucesso nessa empreitada.

Segundo Elias, a época não era propícia para o surgimento de artistas autônomos, como era o perfil de Mozart. A arte, e seus trabalhadores, era mais uma serva da corte, vivia das migalhas que caíam dos grandes banquetes. Mozart sabia disso e tentou romper uma tradição que se mostrou muito maior do que ele e de toda a sua genialidade. Como diria Durkheim, se quisermos saber se o social existe, como uma força exterior aos desejos dos indivíduos, basta nos colocarmos contra ele.

O exemplo de Mozart é o exemplo da força autoritária de uma tradição cega, dogmática, que insiste em demonizar tudo aquilo que está fora do costumeiro, como se a vida pudesse ser programada e ensaiada antes de ser vivida. Ora, sabemos disso, no teatro da vida não há tempo para ensaios.

Durante todo o filme somos bombardeados por uma beleza plena, oriunda dos acordes de Mozart, intercalada pela narrativa de Salieri, que extrapola os limites da lucidez, num monólogo fenomenal, desafiando Deus diante de seu representante na terra, o padre.

Considero o momento final, quando Salieri tenta acompanhar o ritmo de Mozart compondo um Réquiem para sua própria morte, um dos pontos mais emocionantes do filme. Somos colocados ante o momentum da criação de Mozart. É a hora em que a genialidade e o ciúme se harmonizam na finalização do poema sinistro. Um filme para assistir por toda a vida...

...Num dia chuvoso, a 6 de dezembro de 1791, Mozart foi enterrado numa vala comum, prática destinada às pessoas sem honra e glória, que nada de digno haviam deixado para o mundo... as águas da chuva vienense, ao som do terrível Réquiem, transformam-se em lágrimas nos olhos de quem não aceita a mediocridade.

Créditos:
AMADEUS, EUA, 1985.
Direção: Milos Forman
Elenco: F. Murray Abraham, Tom Hulce, Elizabeth Berridge, Simon Callow, Roy Dotrice, Christine Ebersole, Jeffrey Jones, Charles Kay
Fotografia: Miroslav Ondricek
Música e Supervisão de Neville Marriner
Roteiro: Peter Shaffer
Colorido
160 minutos

Prêmios:
Grande Vencedor do Oscar de 1984 com 8 Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Ator (F. Murray Abraham), Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado

Referência Bibliográfica:
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.